Acervo de colunas do professor Saulo César que fala sobre deficiência visual e sua relação com o ensino de português.
Queremos contribuir com a inserção da língua portuguesa e seu ensino no cenário mundial. Sendo uma das mais faladas do mundo, com presença em todos os continentes, achamos urgente ajudar os professores de PLE/ PFOL ou como língua de herança na tarefa de trazer materiais interessantes e atualizados com o que está acontecendo atualmente.
Temos certeza de que as colunas do professor Saulo César sobre deficiência visual e sua relação com o ensino podem ser interessantes para você!
Deem uma olhada em nosso acervo. Tem alguma sugestão? Nos contate através de nossas mídias sociais ou diretamente pelo Whatsapp.
Nesta coluna o professor Saulo César propõe uma reflexão sobre as incertezas geradas na pandemia e a sobrevivência da escola.
Começo este artigo trazendo uma construção metafórica representada por um hiato (quase) imaginário entre a leitura e a interpretação em tempos de globais. Essa provocação inicial apresenta um propósito: refletir entre as incertezas trazidas pela realidade de uma sociedade pandêmica e a necessidade de sobrevivência da Escola e de seus alunos.
Durante a suspensão das aulas presenciais, como parte da adoção de medidas restritivas pelos Governos comprometidos com a vida, exigiu-se a adoção, adequação e aprimoramento de aulas remotas, tanto nas escolas privadas quanto nas públicas.
Esse novo contexto requereu em particular de professores e educadores em geral, mudanças metodológicas no emprego de estratégias pedagógicas como por exemplo, no estudo da leitura nas aulas de Língua Portuguesa.
Se antes o livro impresso, em muitos casos, ainda exercia papel fundamental na interação leitor – texto, hoje, tem-se os textos digitais que passaram a substituí-lo dentro de uma lógica em que ler é construir o sentido a partir de uma percepção também baseada na virtualidade. Inclusive quando contextualizamos essa tendência ao mundo das pessoas cegas é possível identificar que elas estão na dianteira. Ou seja, com o aperfeiçoamento das ferramentas de acessibilidade ao longo dos últimos anos, destacando-se os software de voz, ATUALMENTE muito popularizados. Os alunos cegos há algum tempo, já leem, compreendem e interpretam materiais digitais por meio de sintetizadores instalados em seus próprios celulares; o que representa um ganho fantástico!
O desenvolvimento tecnológico a partir dos anos de 1990 do século XX, já vinha lançando novos desafios para o campo educacional. E com a aceleração dessa tendência que vivemos agora, (a suspensão de aulas presenciais entre outras atividades sociais), a imersão nessa realidade computacional, tornou-se praticamente compulsória.
A sala de aula física se metamorfoseou em espaço abstrato. É ali que as falas passam a acontecer, os materiais conteúdísticos começam a ser apresentados, as dúvidas são respondidas e os rostos, por vezes, ganham contornos humanizando-se por detrás das telas dos smartphones e seus afins. E, diante desse quadro, a Escola resiste ao seu aniquilamento como detentora do conhecimento; reinventa-se, e no “olho desse furacão” o professor, com sua bagagem mais preciosa: o saber para formar e transformar vidas.
Fazendo referência a minha própria experiência como professor universitário é possível prever que ao final dessa batalha, a Escola sobreviverá (sem entrar no mérito da contabilização de mortos e feridos, literais ou não), quiçá no mesmo modelo que a conhecemos. Certamente continuará a exercer o seu papel de Instituição de Estado, responsável pela educação formal e transmissora de conhecimento.
Para isso se concretizar, no entanto, será necessário exigir da própria sociedade civil, por meio de seus representantes eleitos, que as escolas da rede pública garantidoras constitucionais do acesso à educação para todos, tenham a sua importância reconhecida e seus profissionais valorizados, recebendo todo o suporte necessário para o desempenho adequado de suas funções.
Além disso, só haverá de fato uma transição democrática para essa “Nova Escola” se os seus alunos forem incluídos socialmente no mundo onde vivem, ofertando-se uma distribuição menos perversa de renda que lhe dê dignidade para se reconhecerem respeitados em suas necessidades mais básicas.
Só assim a Escola continuará a exercer o seu papel fundamental de facilitadora para uma aprendizagem de qualidade, formadora de cidadãos e cidadãs, na construção de um país melhor e mais humano, sobretudo em tempos de pandemia.
Prof. Saulo César Paulino e Silva escreve nesse espaço todo mês, para ler suas outras colunas, clique aqui.
Nesta coluna o professor Saulo César propõe uma reflexão sobre as incertezas geradas na pandemia e a sobrevivência da escola.
A leitura do mundo precede a leitura das palavras na construção de uma realidade possível?
Gostaria de iniciar esse nosso artigo, relembrando uma das máximas freirianas, em que o autor dizia: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra[1]”, motivando-nos, em forma de paráfrase, o título desta nossa conversa. Levando-se em consideração o atual contexto, em que as sombras da Idade Média pairam sobre nossas cabeças, ressurgindo das masmorras de Senhores Feudais, torna-se fundamental o resgate das ideias (e ideais) de importantes intelectuais de nossa sociedade brasileira para continuarmos a acreditar que temos uma história e somos uma Nação!
Embora a organização do parágrafo anterior se construa a partir de uma realidade metafórica, não perde a sua importância e relevância, particularmente para nós, Professores e Educadores de uma maneira geral.
Pode-se dizer que o trabalho de sala de aula (ou fora dela),onde o conhecimento se torna a mola propulsora de uma transformação necessária, avançamos pouco e regredimos muito nesses últimos dois anos, no quesito Educação entre tantos outros temas importantes. Somando-se a isso, estamos vivenciando um cenário de horror em que o negacionismo está levando milhares de nossos compatriotas à morte, dilacerando mentes e corações. Nessa perspectiva, me debruço em propor uma reflexão com vocês, caros leitores e leitoras.
E as nossas escolas, nesse contexto? Como ficam?
A volta às aulas surge como um dilema espinhoso tanto para as autoridades, quanto para professores, alunos e seus familiares. Diante desse quadro, desenha-se uma situação ainda mais complexa, quando nos questionamos a respeito de alunos com alguma deficiência, que necessitam de um suporte especializado, além do ensino regular.
Sendo assim, e de acordo com a concepção do nosso Educador Emérito, é possível inferir, que a percepção do presente, ou seja, a leitura do “texto-mundo”, de hoje, poderá fornecer ingredientes para o surgimento de uma geração de alunos (com deficiência ou não) esvaziada do significado do termo escola, onde conhecimento e vivência são essenciais para a formação do ser humano e consequentemente da vida em sociedade.
Retomando a provocação inicial, exposta no título deste texto, pode-se afirmar que o ato de ler vai muito além do reconhecimento do código, ou seja, o nascimento de leitor, prescinde da “morte” do autor, segundo o pensador francês Roland Barthes, quando defendia uma espécie de pós-estruturalismo desconstrutor em “O Rumor da Língua”. [2]
Portanto a construção de sentidos, durante o ato de ler, é resultante das experiências de mundo desse leitor, em que a vivência cultural e social contribuem para o enriquecimento de seu repertório, dinamizado cognitivamente em suas memórias de longo prazo. Nesse sentido, é possível inferir que alunos cegos, por exemplo, provavelmente, apresentarão uma vivência diferenciada de alunos videntes, que contam com a visão para compreenderem e interpretarem o mundo a partir, e principalmente, de suas referências visuais.
Este breve texto não tem a pretensão de apontar respostas, mas suscitar questionamentos, que levem a pensar como esses alunos cegos estariam interpretando a realidade presente! Para ilustrar essa ideia, sabe-se, por exemplo, que a rotina sintática, dos móveis, em uma sala de aula, é fundamental para proporcionar mobilidade e segurança do eu-sujeito cego. Diante disso, pergunta-se: de que maneira o atual quadro social, em que todas as rotinas foram alteradas, estariam repercutindo em suas vidas e influenciando suas percepções?
Dessa forma, voltamos ao cerne de nossa preocupação mais urgente: a reabertura das escolas e a volta as aulas presenciais parecem colocar em xeque duas perspectivas, que se antagonizam momentaneamente: a preservação da vida ou a retomada dos estudos.
Sem querer oferecer respostas prontas, penso que para haver escola é preciso, primeiramente, que as pessoas existam, pois a inversão dessa premissa leva a um sofisma macabro.
Agradeço, mais uma vez, a participação de todos vocês e se puderem compartilhar suas opiniões, a partir dessas reflexões, poderemos construir, juntos, um diálogo interativo muito promissor.
Obrigado.
[1] FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo: cortêz, 1988.
[2] BARTHES, Roland. O rumor da língua. Trad.: Mário Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988.
O professor Saulo César começa o ano de 2021 pensando sobre desafios educacionais na pandemia, algo fundamental na área da educação.
A atual conjuntura social e econômica em nosso país exige de nós, profissionais da educação, um replanejamento, que vai muito além dos desafios em sala de aula e dos conteúdos programáticos específicos das disciplinas. Isso se mostra ainda mais grave quando se insere nesse contexto, os alunos com necessidades educacionais especiais, e em particular os cegos.
É de conhecimento de muitos, seja pela prática docente, ou por meio de informações veiculadas pelos diversos meios de comunicação, que entre os anos de 2003 e 2016, o Brasil avançou muito na conquista dos Direitos da Pessoa com Deficiência, avanço este refletido por meio de ações afirmativas e capitaneadas por um Ministério da Educação, que tinha como uma de suas principais metas a ideia de uma escola para (e com) todos. A título de exemplificação, gostaria de citar a campanha “Toda criança é única”, implementada pelo MEC, que se organizava por uma série de vídeos, em que alunos do ensino fundamental, de escolas públicas, com diferentes deficiências, eram apresentados em contexto de inclusão em sala de aula. ¹
Durante esse período, floresceram propostas de Educação Inclusiva, com novas diretrizes curriculares; além de cuidado na criação e manutenção de cursos para formação de professores para trabalharem em cenários de diversidade. O país viveu, naquele período, uma espécie de “apogeu educacional”, em que a meta era zerar o índice de analfabetismo com nenhuma criança fora da escola.
É preciso observar, no entanto, que isso só foi possível porque houve um conjunto de ações, no campo social, com a construção de redes de proteção como Bolsa Família, por exemplo, que permitiu a inversão de uma lógica perversa, que vigorou no Brasil, oriunda de suas raízes escravocratas, separando a sociedade em um tipo de “castas”. Portanto, antes de se ter todas as crianças em sala de aula, seria necessário proporcionar a elas e as suas famílias, a possibilidade de sobrevivência, levando-se comida para suas mesas, ao menos, três vezes por dia.
Durante essa “onda social”, tive a oportunidade de desenvolver e concluir minha pesquisa de doutorado, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, cujo objetivo foi identificar como o aluno universitário cego constrói as suas identidades sociais, durante as atividades de leitura. Essa experiência acadêmica me trouxe ganhos profissionais e pessoais muito valiosos, pois aprendi a “ver” com outros olhos o mundo e a vida, desenvolvendo, assim, instrumental necessário para o planejamento de atividades pedagógicas com os alunos cegos em sala de aula, na área de Língua Portuguesa. Esse perceber o outro e suas necessidades contribuiu, e muito, para a troca de experiências com meus alunos universitários de Letras e Pedagogia, no ensino de leitura e as estratégias para as atividades com alunos cegos.
Mais recentemente, passei a investigar, em minha pesquisa de pós-doutorado, na Universidade de São Paulo, como essa construção identitária ocorreria no momento em que esse aluno interpreta textos, empregando modalizadores. Como sugestão de leitura, deixarei em nota de rodapé um artigo, que publiquei sobre o tema. ²
Durante este primeiro semestre, minha proposta é compartilhar com vocês algumas dessas reflexões, incluindo a indicação de outras leituras, filmes e vídeos a respeito desse assunto.
Neste início de 2021, já sabemos que os desafios serão imensos, pois, como é de conhecimento público, passamos por um momento histórico único, em que a humanidade enfrenta uma ameaça a sua sobrevivência por fatores de saúde ainda desconhecidos, gerando medo e insegurança nos mais diversos países, ao redor do planeta.
Somando-se a essa realidade de pandemia, observamos estarrecidos, em nosso Brasil, a desconstrução pelo próprio Ministério da Educação desse projeto de inclusão, com o desmonte das redes sociais protetivas, tão necessárias para superarmos barreiras e desenvolvermos novos caminhos.
Caberá, portanto, a nós professores e outros atores envolvidos com os mais diferentes segmentos sociais e educacionais, estarmos atentos aos discursos duvidosos, geradores de sentimentos caóticos, opostos ao fraterno e inclusivo, que colocam a pesquisa e a ciência como sofismas de uma suposta “teoria conspiratória”.
Para finalizar, gostaria de dar as boas vindas a todos e todas, parabenizando, em especial, os Organizadores deste espaço virtual, que nos incentivam a alimentar o diálogo com o outro, traçando, dessa forma, estratégias de resistência à barbárie e ao obscurantismo.
Produção textual com alunos deficientes visuais a partir das noções de coesão, coerência e intencionalidade
A sala de aula é um complexo mosaico de diferentes realidades. Ela se apresenta como se fosse uma orquestra cuja responsabilidade e intencionalidade de regê-la está sob égide do maestro a quem caberá harmonizar os instrumentos, mantendo-os coesos e coerentes com a intencionalidade de executar com primor partitura apresentada.
Levando-se em conta essa metáfora, e transpondo-a para a realidade educacional, em particular das escolas públicas brasileiras, descortinam-se inúmeros desafios para os profissionais da educação.
No ensino de Língua Portuguesa, principalmente nos anos finais do ensino médio, as aulas de redação têm se mostrado desafiadoras e, não raro, apresentando resultados aquém do esperado com alunos videntes. Agora, imaginemos essa realidade aplicada aos alunos com deficiência visual!
A primeira questão que se nos apresenta é: por que os alunos, de maneira geral, apresentam baixo desempenho na construção e organização textual? Uma resposta definitiva e objetiva seria uma “aventura” perigosa que poderia resvalar na superficialidade de uma visão sem cientificidade ou critérios metodológicos.
Por isso proporemos algumas reflexões, levando-se em conta 03 elementos importantes dos fundamentados na Linguística de Texto: a coesão, a coerência e a intencionalidade.
Para iniciarmos, primeiramente, vamos retomar a metáfora da orquestra, onde os alunos seriam os músicos, a produção textual deles os instrumentos e o professor, o maestro responsável pela harmonização e execução da peça musical.
Partindo dessa perspectiva, iremos agora, contextualizar esse “músico” e seu “instrumento” para a realidade do aluno cego, cujas características são bem distintas do aluno vidente, ou seja, aquele sujeito que não apresenta comprometimento em sua acuidade visual.
Para se compreender o universo da pessoa com deficiência visual, torna-se necessário, primeiramente, despir-se de todo e qualquer preconceito que se tenha adquirido ao longo da vida. Os estereótipos de incompletude, comiseração, incompetência, dentre outros permeiam a discriminação, ainda que isso ocorra de maneira involuntária.
Basicamente, as limitações visuais que acometem grande parte da população deficiente visual estão baseadas em três grandes classificações que iremos, resumidamente, apresentar a seguir.
Cegueira Congênita: a pessoa nasce sem a visão ou poderá perdê-la antes dos 05 anos de idade por motivos de enfermidades degenerativas ou de má formação do sistema visual. Isso ocasiona a não organização da chamada “memória visual”, importante para o desenvolvimento cognitivo.
Cegueira Adquirida (ou tardia): a pessoa é acometida da perda visual total por algum trauma que causa alguma lesão do globo ocular, ou em algum outro órgão da visão, após os 05 anos de idade. Nesse período, o indivíduo já tem desenvolvida a memória visual que contribuirá para a compreensão do mundo e sua interpretação.
Baixa Visão: a pessoa apresenta diferentes graus de comprometimento visual, mas ainda utilizará algum resíduo (visual) para a execução de tarefas, como por exemplo, a leitura de textos com auxílio de ampliadores de tela e outros acessórios que poderão auxiliá-la. Nestes casos, a memória visual também estará preservada.
Acreditamos que o conhecimento (e reconhecimento) dessas características em seus alunos poderá auxiliar o professor a planejar estratégias pedagógicas que contemplem as necessidades específicas de cada caso. Por isso, independentemente da atuação desse professor ser ou não em sala de recursos, os conhecimentos básicos sobre a deficiência visual se tornam fundamentais em sua formação. Em nosso próximo artigo, pretendemos trazer e apresentar alguma dessas estratégias.
Após essa breve introdução, gostaríamos de propor uma reflexão de como trabalhar a produção textual com alunos deficientes visuais, tomando por base a coesão, a coerência e a intencionalidade. Na teoria da Linguística Aplicada, os três elementos citados são imbricados, porém singulares.
Para se refletir sobre essa perspectiva, torna-se necessário rever os conceitos de texto seja no âmbito oral ou escrito. Levando-se em consideração que a textualidade vai muito além de seus aspectos gramaticais e sintáticos, faz-se necessário concebê-la como uma unidade significativa de comunicação que está relacionada ao contexto onde é produzida, assim como aos interlocutores envolvidos nesse processo.
A produção do texto escrito poderá ser trabalhada pelo professor, levando-se em consideração os três elementos descritos acima, considerando a partir da linha teórica da Linguística de Texto, que, em seu conjunto, poderá auxiliar os alunos deficientes visuais na redação de bons textos a partir de seu conhecimento de mundo.
Para que essa estratégia apresente resultados satisfatórios, será necessário em um primeiro momento, apresentar aos alunos os conceitos de coesão, coerência e intencionalidade de forma lúdica e bem simplificada, somando-se ao (re)conhecimento das necessidades específicas de cada aluno com essas características. Isso será fundamental para que a “orquestra” não desafine.
O conceito de coesão é definido como a organização dos elementos gramaticais do texto, tornando-se responsável por sua “ampliação”. Em outras palavras: a expansão necessária para atender a intencionalidade de seu produtor. Essa expansão está relacionada com a estrutura microestrutural do texto.
Por outro lado, a coerência está relacionada com a macroestrutura do texto, ou seja, com os sentidos globais do enunciado, tornando-se responsável pela construção de sentido. Portanto, ao se considerar um texto como “uma boa produção”, estaremos levando em consideração os aspectos macro e microestrutural, isto é, textos que apresentem coesão e coerência. No entanto, nessa perspectiva, poderemos também encontrar textos coesos e sem coerência, ou ainda, textos coerentes e sem coesão.
Para se falar a respeito de intencionalidade é necessário levar em consideração aspectos importantes como o contexto onde o texto foi produzido, assim como a ideologia subjacente à materialidade linguística expressa na organização do enunciado. De acordo com Koch e Elias (2006)¹, qualquer produção textual, oral ou escrita, apresenta uma intenção, ou seja, uma motivação que levará o autor a determinado posicionamento. Portanto, nessa ótica, a ideia de “neutralidade” perde significado, pois de acordo com a teoria da Linguística Textual, não há textos neutros. Toda e qualquer produção está imbuída de uma intencionalidade, consciente ou não.
Resumidamente: a intencionalidade organiza as informações textuais a partir de um planejamento prévio descrito da seguinte forma: 1. O que falar; 2. Para quem falar; 3. O quanto falar; 4. De que maneira falar.
Após o reconhecimento do universo e as necessidades específicas do aluno com deficiência visual, assim como a importância da coesão, coerência e intencionalidade, no momento de se redigir um texto, acreditamos que o professor estará instrumentalizado para planejar, desenvolver e executar atividades pedagógicas eficazes nas aulas de Língua Portuguesa.
Dessa forma, acreditamos que o “maestro” estará aptopara a execução de uma obra, pautada na eficácia textual em que os músicos e os instrumentos se harmonizam na construção de um cenário propício para o aprendizado.
Como foi comentado anteriormente, em nosso próximo artigo traremos algumas sugestões de atividades, que poderão ser trabalhadas com alunos deficientes visuais durante as aulas de produção textual a partir das discussões apresentadas neste texto.
Agradeço pela atenção de todos vocês. Se acharem o texto interessante, podem compartilhar ou comentar no espaço desta coluna.
Até uma próxima oportunidade.
KOCH, Ingedore V. e ELIAS, Vanda M. Ler e Escrever – estratégias de produção textual. São Paulo: Contexto, 2009.
Prof. Saulo César Paulino e Silva escreve nesse espaço todo mês, para ler suas outras colunas, clique aqui.
A transdisciplinaridade é uma ferramenta importante para o compartilhamento do conhecimento nas mais diversas áreas do saber. É fundamental que essa construção seja realizada a partir da concepção de pluraridade em que a interação dos estudos, dos mais diferentes campos de pesquisas, se torne uma prática no cotidiano das instituições acadêmicas.
Pensando na urgência de se propor alternativas, apresentamos, em nossa pesquisa de pós-doutorado, um estudo que envolveu, além do arcabouço teórico sobre cognitivismo, linguagem e construção de sentido pelas pessoas com deficiência visual em eventos audiodescritos, pesquisas com ressonância magnética funcional, relacionadas ao campo da Física Geral.
Para atender às características específicas desta proposta, o projeto foi desenvolvido em duas etapas que se complementam. Na primeira, estudamos (comparativamente) a construção de sentido por meio do uso de expressões modalizadoras de proximidade, identificadas por meio da análise dos protocolos verbais, coletados durante a exibição de um curta-metragem audiodescrito e teve como base teórica principal estudos da gramática funcionalista. Essa primeira etapa de nossa pesquisa, já foi publicada em nesta coluna, em duas etapas, e está a disposição dos leitores.
A segunda etapa, ainda em desenvolvimento, objetiva investigar como ocorreria essa construção de sentido, levando-se em consideração os aspectos morfológicos do cérebro dos participantes (cegos e videntes). Para isso, os estudos com ressonância magnética funcional são fundamentais, pois o escaneamento cerebral proporciona visualizar em tempo real as áreas cerebrais que são ativadas a partir de determinados inputs provocados pelas tarefas aplicadas.
A amplitude e complexidade do tema exigiu que fizéssemos um recorte para a delimitação do universo de pessoas com deficiência visual, levando-se em conta que há diferentes graus de deficiência, provocados por diferentes causas, que vão desde a cegueira total a baixa visão (que é o uso residual da visão para a execução de tarefas cotidianas). Nesse contexto, ainda, é preciso considerar que há situações em que o indivíduo desenvolve uma memória visual e em outros, não. Por isso trabalharemos com os cegos congênitos, que são, justamente, aqueles casos em que a pessoa nasce cega e não desenvolveu essa memória.
Diversos estudos e pesquisas evidenciam que a plasticidade neuronal adaptativa, nos cegos congênitos, faz com que os neurônios occipitais sejam recrutados para executarem outras tarefas sensoriais relacionadas ao tato, à audicão, ao olfato e ao paladar. Entretanto, não se tem conhecimento, até o momento, a respeito de como esses neurônios atuam e qual a sua participacão na realização dessas tarefas. Estudos a respeito do tema não revelam se os neurônios occipitais são recrutados para servir como auxiliares ou se poderiam agregar aos neurônios responsáveis pelo processamento dos sinais, oriundos de outros sentidos como uma parte integrada. Sobre esse assunto, há duas hipóteses plausíveis, defendidas por grupos diferentes de pesquisadores. De acordo com a primeira hipótese, alguns cientistas acreditam que, logo após o nascimento, os neurônios não executam tarefas específicas, pois todos seriam capazes de processar qualquer estimulo sensorial, independente de sua localizacão. A segunda hipótese defende que desde o nascimento os neurônios apresentam especificidade e somente um conjunto de neurônios, designados a processar um tipo de estimulo sensorial, são convocados para realizar outro tipo de estimulo, quando há inatividade de um dos sentidos. Por exemplo, os neurônios occipitais são recrutados para processar os estimulo auditivo nos cegos congênitos. Isso ocorreria porque o lobo occipital, responsável pelo processamento dos sinais oriundos da retina, é dividido em estriado e pré-estriado e este último está subdividido em pelo menos outros seis seguimentos distintos.
Nessa perspectiva, surgem alguns questionamentos, organizados nas seguintes perguntas: Primeira: no caso dos cegos (congênitos), os neurônios recrutados para executar diferentes tarefas no uso do tato, da audicão, do paladar e do olfato seriam os mesmos ou para cada sentido haveria convocação de uma determinada área do córtex occipital? Segunda: esse recrutamento seria padrão para todos os cegos (congênitos e adquiridos) ou mudaria de individuo para individuo? Na maioria dos estudos avaliados, os estímulos empregados são de curta duracão e o seu planejamento impõe inúmeras restrições aos voluntários. Porém é possível empregar estímulos prolongados em que ocorrerão menos restrições aos voluntários. Como exemplo, podemos indicar o trabalho de no qual os voluntários assistiram um filme em uma sessão de fMRI (functional Magnetic Resonance Imaging). Posteriormente, as imagens obtidas, durante o escaneamento, foram processadas, estabelecendo-se a correlacão, pixel por pixel, entre os cérebros dos participantes. O resultado das análises, da investigação citada, revelou que a exibição sequencial estabeleceu certa correspondência entre os cérebros dos voluntários. Entretanto, quando o filme foi seccionado e as cenas mostradas aletoriamente, essa correlacão desapareceu completamente.
No presente trabalho, já estamos realizando experiência, que tem como referencial o estudo citado anteriormente. Porém a ênfase é para a audiodescrição e o processamento cerebral de pessoas cegas e videntes. Para isso é exibido um curta metragem audiodescrito, para dois grupos distintos, organizados em cegos congênitos e voluntários videntes, que participam das sessões com olhos vendados. Na perspectiva desse recorte investigativo, a pergunta que surge é se haverá correlacão entre os cérebros dos cegos entre si, e entre os cérebros das pessoas cegas com as videntes. Essa análise comparativa, ainda em andamento, poderá fornecer subsídios importantes para responder (total ou parcialmente) as perguntas mencionadas, anteriormente.
Referências Bibliográficas
Hasson, Y. Nir, I. Levy, G. Fuhramann, and R. Malach. Intersubject synchronization of cortical activity during natural vision. Science, 303:1634 { 1640, 2004.
R•oder, O. Stock, S. Bien, H. Neville, and F. R•osler. Speech processing activates visual cortex in congenitally blind humans. European Journal of Neuroscience, 16(5):930{936, sep 2002.
Imagem 1. Experiência com grupo de pessoas videntes em máquina de ressonância magnética e membros de nossa equipe.
Professor Saulo César escreve mensalmente nesse espaço.
Nessa coluna o professor Saulo César reflete um pouco sobre as pessoas cegas e os novos tempos em meio dessa pandemia que afeta a todos.
Prezados leitores,
Em tempos de Pandemia, e incertezas, há premência de um reinventar(se), que aflora a todo instante, em meio aos desafios que colocam em xeque a existência humana, possibilitando-nos trabalhar as nossas práticas cotidianas, desde as mais imediatas, chegando-se àquelas, nem tanto.
O atual cenário, que se descortina para as sociedades modernas e, em particular, a brasileira, exige um isolamento necessário e fundamental para se reorganizar o pensar, o compreender e por que não o reviver?! Nesses momentos, em que a virtualidade desenha outras formas de convívio e interação, torna-se possível identificarmos os nossos “eus”, e suas possibilidades do vir a ser, conforme afirma Hall, 2003¹.
Esse é um momento único em que o conhecimento adquirido ao longo dos anos de pesquisas, relacionadas com a construção de sentido e a percepção de identidades sociais, nos proporciona interpretar o nosso entorno a partir de algumas linhas teóricas, que vão se consolidando no praticar das formas de convívio em ambientes digitais.
Nossos estudos desenvolvidos com as pessoas cegas (ou com grave comprometimento da visão) objetivaram investigar como essa construção identitária ocorreria a partir de eventos audiodescritos. Os resultados nos apresentaram uma forma particular de conceber a vida, por meio da experiência daqueles que, sem as referências visuais, constroem diariamente a sua interpretação de mundo, por meio de outros sentidos como a audição e a percepção tátil-cinestésica.
De certa forma, aprendemos muito com esse universo, pois, o aparente isolamento em que vivem, é resultado do estereótipo social, cristalizado em nossa cultura, permeado pela ignorância e pelo preconceito. Nosso convívio nessa comunidade mostrou que, ao contrário, os cegos são muito dinâmicos e comunicativos.
Forçosamente, nesses tempos em que a morte assombra o sono e o sonho, nós, videntes², tivemos de reinventar possibilidades de linguagem, ao mesmo tempo, em que nos voltamos para nós mesmos. Seria uma espécie de autorreflexão, em que a tela da tecnologia realiza “bakhtinianamente” a mediação necessária entre o eu e o outro.
Não seria exagero afirmar que a teoria, nesta situação vivida, nos fornece os instrumentos indispensáveis para compreender os acontecimentos, que nos cercam de forma mais profunda, mesmo que estejamos confinados nos espaços delimitados de nossas casas.
Portanto é indispensável “ver com olhos livres”, parafraseando Oswald de Andrade, o novo amanhã para entendê-lo em toda a sua complexidade.
Afinal, ninguém melhor do que a pessoa cega para nos ensinar a enxergar com os olhos da alma.
(1) STUART, Hall. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: RJ, 2005, 10ª. Ed.
(2) Vidente: termo empregado para se referir as pessoas não cegas.
Professor Saulo César escreve mensalmente nesse espaço. Para acessar suas outras colunas, clique aqui.
Nessa coluna o professor Saulo César reflete um pouco sobre as pessoas cegas e os novos tempos em meio dessa pandemia que afeta a todos.
Continuando a coluna do professor Saulo César, seguimos com a segunda parte.
Caso não tenha lido a primeira, basta clicar aqui.
IDENTIFICAÇÃO DAS EXPRESSÕES MODALIZADORAS NOS GRUPOS SOB INVESTIGAÇÃO
A análise será apresentada de modo resumido, dadas as características e finalidades de um artigo como este. A leitura dos protocolos, referentes às expressões modalizadoras, de acordo com modelos estudados na fundamentação teórica, permitiu identificar os seguintes usos: 1. Expressão aproximativa, com valor pragmático de incerteza ou imprecisão, com relação ao outro ou ao objeto descrito (heteroavaliação); 2. Expressão aproximativa, com valor de incerteza ou imprecisão, com relação à própria elaboração do falante (autoavaliação).
Os protocolos dos grupos de controle e focal revelaram resultados interessantes, que foram organizados nos quadros resumitivos 1 e 2, apresentados a seguir. No primeiro quadro, foram identificadas as expressões aproximativas mais empregadas pelos participantes do Grupo de Controle. No quadro 2, foram também identificadas as expressões aproximativas mais utilizadas pelos participantes do Grupo Focal.
QUADRO RESUMITIVO COM EXPRESSÕES APROXIMATIVAS MAIS EMPREGADAS / GRUPO DE CONTROLE
EXPRESSÕES APROXIMATIVAS
Participantes
Valor pragmático de incerteza/empregos
Imprecisão com relação a própria elaboração do falante
GC2-SF-1
Uma certa
Parece que
Praticamente
02
1
1
Acho que
Talvez
De certa forma
Necessariamente
Não sei se
Assim
8
5
2
1
1
1
GC2-SF-2
Parece que
Assim
Acho que
1
1
1
Acho que
Quase
Talvez
Achei
9
1
1
1
GC1-SM-1
Acho que
Realmente
Aparentemente
Acredito que
Parece que
Parece
Achei
12
2
2
1
1
1
1
Acho que
Assim
Parece
Parece que
5
2
1
1
SUBTOTAL
223
39
QUADRO RESUMITIVO COM
EXPRESSÕES APROXIMATIVAS MAIS EMPREGADAS /GRUPO FOCAL
EXPRESSÕES APROXIMATIVAS
Participantes
Valor pragmático de incerteza/empregos
Imprecisão com relação a própria elaboração do falante
GF1-SF-1
Imagino que
0
11
Acho que
Não sei se foi bem
isso
Assim
3
1
1
GF2-SF-2
As vezes
Acho que
1
1
Acho que
Talvez
2
1
GF1-SM-1
Acho que
3
–
–
GF1-SM-2
–
Acho que
3
SUBTOTAL
10
11
Para exemplificar esta análise, serão apresentados dois recortes dos protocolos. O primeiro foi extraído do Grupo de Controle e o segundo do Grupo Focal.
RECORTE 01 – GRUPO DE CONTROLE
Linhas 62 –70 / Trecho – 05
Pesquisador: tá bom a narrativa/ durante a narrativa em algum momento
62.1 despertou em você a vontade de de ver as imagens? (+)
GC2-SF-2: nossa, então curiosamente não ((risos)) eu imaginei que iria, mas não,
.não porque :: é:: mas assim / acho que / porque a narração é muito bem feita , a
65.mulher que narra ela coloca cada palavra do título muito certeiro, eu consigo
66.construir a imagem, interpretar e pegar o sentido ((inaudível)) da entonação dela
67.Pesquisador: Tá
GC2-SF-2: muito bem feito, todo momento/ o momento em que ele está criando,
momento em que ele ((inaudível)) eh momento de tensão a narração dela foi eh foi
.suficiente acho que pelo modo como ela faz / eu senti
A leitura do trecho, destacado acima, revela na linha 64, o emprego da expressão aproximativa de dúvida da falante “acho que” como forma de organização da resposta proposta pela pergunta do pesquisador. A participante procurou demonstrar que o texto audiodescrito foi suficiente para informar ao leitor sobre o conteúdo da história, não deixando dúvida quando diz: “a narração é muito bem feita”. Mais adiante, na linha 70, a participante retoma a sua tese inicial observando que foi possível entender a proposta temática do vídeo, quando afirma que “foi suficiente (…) pelo modo como ela faz (narração)”.
RECORTE 02 – GRUPO FOCAL
GF1-SF-1
Linhas 11–16 / Trecho – 02
11.Pesquisador: e você acredita que a a audiodescrição ela foi importante nesse
12.processo pra você entender a proposta desse vídeo?
13.GF1-SF-1: sim, sim foi, mas na verdade eu:: eh acho que eu / um texto inteiro por
ser só uma vez é pouquinho mais difícil de conseguir captar a audiodescrição, pelo
15.menos eu tenho uma dificuldade, assim, de da primeira vez que eu ouço, conseguir 16.absorver tudo
A análise da expressão modalizadora “achar que”, em seu contexto interativo, revela que os participantes a empregaram provavelmente intencionando assegurar sua opinião a partir da pergunta realizada pelo pesquisador. Nesse sentido, tem-se a expressão aproximativa de incerteza “achar que”, como elemento organizador do argumento, comum entre os participantes com deficiência visual e o pesquisador, seguindo estratégias semelhantes às do grupo de controle.
A MENSURAÇÃO DE ALGUNS RESULTADOS
O uso das expressões modalizadoras de proximidade pelos participantes do grupo focal, ao serem comparados com o grupo de controle, apresentou algumas sequências que se aproximaram ao emprego realizado pelos videntes, sem, no entanto, perder as suas particularidades. As convergências estão no emprego das expressões modalizadoras de proximidade explícitas; aquelas em que os falantes revelam a sua opinião, ao fazerem o uso da primeira pessoa (eu), por exemplo, flexionando o verbo modal epistêmico, relacionado ao emprego do pronome “que”. A expressão modalizadora de proximidade mais empregada no grupo composto por indivíduos com deficiência visual foi “acho que”, conforme se poderá conferir no quadro resumitivo 2. Com esse resultado, inferimos que o uso de expressões modalizadoras, formadas por “acho que”, pelos participantes com deficiência visual, evidencia um posicionamento mais seguro, mais “concreto”, em relação ao objeto audiodescrito, levando em conta que a percepção de mundo dessas pessoas passa por um processo tátil-cinestésico, ou seja, é preciso sentir o objeto em suas mãos, percebê-lo com o tato para interpretá-lo. Dessa maneira, quando o participante se posiciona em primeira pessoa, fala a partir de um mundo conhecido, onde se sente seguro, pois tem como referências sua própria experiência de pessoa com deficiência visual.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMIRALIAN, Maria Lúcia T. M. Compreendendo o cego através do procedimento de desenhos-história:uma abordagem psicanalítica da influência de cegueira na organização da personalidade. Tese de Doutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo,1992.
GONÇALVES, S. C. L. LIMA-HERNANDES, M. C. & CASSEB-GALVÃO, V. C. (org.). Introdução à gramaticalização: princípios teóricos e aplicação. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.
KOCH, Ingedore Villaça e TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Texto e coerência. São Paulo: Cortez, 2005.
MELO, H. F. R. de. Deficiência visual: lições práticas de mobilidade. São Paulo: Unicamp/Pontes, 1991.
NEVES, Maria Helena de Moura. Texto e gramática. São Paulo: Contexto, 2006. _____. Uma Visão Geral da Gramática Funcional. Revista Alfa (online), São Paulo, Vol. 38: 109-127,1994. E-ISSN: 1981-5794. Disponível em http://seer.fclar.unesp.br/alfa/article/view/3959. Acesso em 14/05/2017.
NUNES, I. E.; DOURADO, L. Concepções e práticas de professores de Biologia e Geologia relativas à implementação de ações de Educação Ambiental com recurso ao trabalho laboratorial e de campo. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, v. 8, n. 2, p. 671-691, 2009.
SACKS, Oliver. Um antropólogo em marte. São Paulo: Cia das Letras, 2005.
SANTOS, Gabriela Loureiro et al. A gramaticalização do verbo achar no português do Brasil sob um ponto de vistas diacrônico. Revista Revele. No. 05, 2013. Disponível em file:///C:/Users/MCP3/Downloads/4351-12248-1-SM.pdf. Acesso em 19/05/2017.
SILVA, Saulo César da. Percebendo o ser. São Paulo: LCTE, 2009.
ZANOTTO, Mara Sophia. Indeterminação, metáfora e a construção negociada do sentido: uma contribuição para o ensino da leitura – Projeto integrado. PUC-SP, 2002.
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Originalmente um artigo, apresentamos agora em formato de coluna e para esse propósito foi dividido em duas partes.
INTRODUÇÃO
Pesquisar a construção de sentido pela pessoa com deficiência visual, por meio das marcas modalizadoras em seu discurso, exige a percepção de um olhar atento sobre o objeto analisado, que vai além das referências visuais dos videntes[1]. Ao se falar em deficiência visual, é fundamental, primeiramente, descrever, resumidamente o seu conceito e a importância da audiodescrição como ferramenta de acessibilidade, pois ainda é tema pouco explorado no universo das pesquisas acadêmicas.
O termo deficiência visual, não raro, é empregado, genericamente, pelo senso comum, como relacionado às pessoas que “não enxergam”. No entanto, um aprofundamento nos estudos relacionados ao assunto, remete-nos para definições próximas, porém, particularizadas, pois envolvem diferentes graus de comprometimento da acuidade visual.
Nessa perspectiva, identificam-se dois grupos organizados da seguinte maneira:
Primeiro Grupo: Composto por deficientes visuais, que interpretam o mundo por meio de percepção tátil-cinestésica e auditiva. Esse grupo está subdividido em cegos congênitos e tardios. Os cegos congênitos são aqueles que já nasceram sem visão e, portanto, segundo os estudiosos do tema, não apresentam memória visual. Por outro lado, pode-se afirmar que há estudos que defendem a ideia de que se a perda da visão ocorrer a partir dos 05 anos de idade, esse indivíduo apresentará memória visual. Os cegos tardios se caracterizam pela perda da visão, ao longo da vida, por ações externas como traumas no nervo ótico, perfurações do cristalino ou ainda ocasionada pela progressividade de doenças degenerativas como a retinose pigmentar, exemplificada nas imagens a seguir.
Figura 1.Degeneração dos Fotorreceptores retinianosFiguras 3 e 4. simulação comparativa entre a visão normal e a visão comprometida
Segundo Grupo: Composto por indivíduos que apresentam grave comprometimento da visão denominado baixa visão. No entanto, diferentemente do grupo anterior, a interpretação do mundo, assim como a execução de tarefas cotidianas, se faz também com o auxílio da visão residual.
A concepção classificatória em dois grupos foi adotada para facilitar a organização da nossa pesquisa, embora ainda persista, na prática, certa falta de consenso. É o que depreendemos na alternância no uso dos termos deficiente visual e cego, por exemplo, em MELO, 1991. Por outro lado, a proposta de AMIRALIAM, 1992 dispõe esses rótulos numa espécie de continuum, baseado no impacto da doença e na funcionalidade biológica dos olhos. Nessa perspectiva, o deficiente visual estaria alocado num ponto de menor impacto se comparado à rotulação de cego, o indivíduo com mais amplo comprometimento da visão. Para fins metodológicos, no entanto, empregaremos o termo deficiente visual como uma classificação mais genérica, envolvendo os diversos tipos de comprometimento da acuidade visual[2] e a partir dessa generalização, a organização das seguintes subdivisões: a) cegos congênitos; b) cegos tardios; c) baixa visão, já mencionadas anteriormente.
Historicamente, as pessoas com deficiência visual foram excluídas dos processos produtivos nas sociedades ocidentais, tornando-se marginalizadas, isoladas e submetidas a tratamentos assistencialistas. Essa ação segregacionista começou a ceder espaço a partir do final do século XX, mais precisamente em meados dos anos de 1980, acentuando-se nos anos de 1990, adentrando nesta primeira metade do século XXI. Lendo-se os inúmeros documentos importantes, relacionados com a adoção de ações efetivas para a inclusão de determinados grupos marginalizados, é possível destacar a Convenção sobre os Direitos da Criança (1988); Declaração Mundial sobre Educação para Todos (1990) e Declaração de Salamanca (1994).
Dentre esses materiais documentais, que impulsionaram o movimento inclusivo, destaca-se a Declaração de Salamanca, que alinhavou o compromisso dos países signatários, dentre os quais o Brasil, durante os Governos Populares, no desenvolvimento de políticas públicas afirmativas em que as pessoas com alguma deficiência obtivessem oportunidades de participação social. No entanto, lamentavelmente, estamos presenciando a perda paulatina dessas conquistas, a partir do momento em que houve uma ruptura com a perspectiva social.
Naquele contexto, as pessoas com alguma deficiência passaram a ter o direito de trabalhar, desfrutar de atividades de lazer, participando de eventos socio-culturais como teatro, shows, cinemas, exposições fotográficas, entre outros, tornando-se, também, consumidores desses bens culturais e neste grupo social também os deficientes visuais. Foi a partir da mudança de paradigma social, que começaram a ser gestadas diferentes ferramentas de acessibilidade, e, posteriormente implementadas, pudessem atender a essa nova demanda, facilitando a interação dessas pessoas com o mundo a sua volta.
A audiodescrição, embora relativamente recente no Brasil, veio ao encontro dessa tendência, suprindo uma lacuna, que torna possível para a pessoa com deficiência visual compreender um evento artístico, podendo, intuir, dessa maneira, sua própria construção perceptiva. O conceito para audiodescrição está associado, segundo MOTA e ROMEU FILHO, 2010, ao recurso de acessibilidade que oportuniza a interação de pessoas com deficiência visual em eventos culturais, gravados, como é caso dos filmes, por exemplo, ou ao vivo, como é o caso das peças teatrais e óperas. Outra definição importante, apresentada por VIEIRA LIMA, 2010, conceitua a audiodescrição como uma modalidade de tradução que permite passar de uma linguagem imagética para uma linguagem verbal, objetivando-se a fidelidade da informação original.
Nesse escopo social recente, em que as pessoas com deficiência conquistaram voz, abrindo espaços interativos, a sociedade passou a contar com a presença de muito mais cidadãos; contexto em que a audiodescrição ganhou significado cada vez mais relevante. A especificidade da audiodescrição para transformar imagens em texto, caracterizando-se como gênero narrativo, proporcionou investigar a ativação dos mecanismos linguísticos na recepção das informações audiodescritas a partir do projeto discursivo-pragmático, ou seja, efeitos de sentido e intenções comunicativas. Isso justificou nossa preocupação com uma pesquisa científica que teve como principal objetivo investigar e identificar a construção de sentido pela pessoa com deficiência visual a partir dos inputs proporcionados pela audiodescrição.
Cabe salientar que essa construção de sentido poderá ocorrer por meio de diferentes estratégias cognitivas dos participantes dos grupos de pessoas deficientes visuais e videntes, observando-se as marcas linguísticas de opinião, definidas como expressões modalizadoras de proximidade. Para isso, foram analisadas as funções discursivo-pragmáticas, referidas anteriormente, relativas às expressões modalizadoras, considerando-se a intenção do falante.
Durante a análise dos protocolos, tanto do grupo focal, quanto do grupo de controle, foi possível identificar o uso de alguns verbos epistêmicos de opinião e, de uma maneira geral, das expressões modalizadoras. Isso nos chamou a atenção, pois, embora esses verbos estejam na primeira pessoa gramatical, esse tipo de flexão caracteriza, na maioria das vezes, os verbos deônticos.
Nesse caso específico, segundo NEVES, 2006:
uma expressão tende menos para uma interpretação deôntica quando está na terceira pessoa, e mais quando está na primeira, enquanto a modalidade epistêmica se associa mais com a terceira pessoa e menos com a primeira. Entretanto, os verbos de opinião (epistêmicos) são característicos de primeira pessoa (…) ( 189). (Grifo Nosso).
É preciso salientar, entretanto, que as expressões modalizadoras não se limitam aos verbos, observado anteriormente, podendo, ainda, ser classificadas em expressões implícitas ou explícitas (BALLY, 1942, apud NEVES, 2006, 170). Contudo, levando-se o caráter funcionalista de boa parte da base teórica, desta pesquisa, trataremos tão somente das explícitas como, por exemplo, “acho que”, “parece que”, “talvez”. Os falantes, ao comentarem sobre o vídeo, consomem maior tempo para as expressões aproximativas, em que há uma dúvida implicada, do que para as necessidades e possibilidades. Essa é a razão por que decidimos nos determos na análise da gradação das expressões aproximativas.
JUSTIFICATIVA DA CLASSIFICAÇÃO DAS EXPRESSÕES MODALIZADORAS E SUA FUNÇÃO NO ENUNCIADO
Partindo-se do pressuposto de que a definição de expressões modalizadoras, ainda não é consensual, levando-se em consideração o número de diferentes linhas teóricas que as estudam, tem-se, como resultado, certa “flexibilidade” conceitual a seu respeito, conforme assinala NEVES, 2006, 151. Nesse sentido, é importante observar que a modalização, a partir do universo linguístico, caracteriza o uso das línguas naturais nos mais diversos contextos socioculturais. Nessa perspectiva, faremos a delimitação, como já apontado, de nos concentrarmos nas expressões modalizadoras explícitas, embora essas expressões não sejam estáticas, caracterizando-se ora com valor pragmático de incerteza, ora com valor de incerteza na própria elaboração do falante. Portanto, há momentos em que o falante apresenta alguma dúvida em relação ao objeto interpretado em outras situações apresenta incertezas a partir de uma autorreflexão na construção argumentativa.
Os contextos em que essas expressões foram empregadas possibilitaram, ao pesquisador, mensurar, ainda que subjetivamente, as intencionalidades que o seu uso procura garantir, quando do emprego de estratégias que visam aceitabilidade. Para sustentar essa mensuração, é fundamental partir de dois pontos imbricados: a intencionalidade do ponto de vista linguístico e o processo de gramaticalização que o verbo “achar” nas expressões modalizadoras tanto de incertezas pragmáticas, quanto de dúvidas e incertezas na própria elaboração do falante.
Do ponto de vista comunicacional KOCH, 2010, afirma que no processo interacional, a intencionalidade está baseada na intenção do produtor, a aceitabilidade compreende o modo com que o receptor reage à informação. Nesse sentido, a aceitabilidade dependerá da aceitação da produção por parte do interlocutor como um processo informacional coeso e coerente (KOCH, 2009ª, 43).
METODOLOGIA
Para a coleta de dados, foram organizados dois grupos: 1. Grupo de Controle, composto por alunos universitários videntes do curso de pós-graduação da USP com idades entre 18 e 30 anos. 2. Grupo Focal, composto por alunos da LARAMARA, com diferentes comprometimentos na acuidade visual, com idades semelhantes.
Os encontros para a coleta de dados foram realizados na LARAMARA e na Universidade de São Paulo, nos quais foram projetados o vídeo audiodescrito “Perfeito” e, posteriormente, aplicado o protocolo verbal individual, que, de acordo com SILVA, 2009 (apud ZANOTTO, 2010) é definido como um método subjetivo no qual o participante opina sobre algum evento, emitindo um ponto de vista a partir do questionamento do entrevistador/pesquisador, sendo o evento registrado por meio de gravação em vídeo ou áudio.
Primeiramente, foram entrevistados os participantes do grupo de controle e, na sequência, os participantes do grupo focal. A seguir, apresentaremos, resumidamente, uma análise comparativa entre os protocolos dos participantes de ambos os grupos e os resultados obtidos.
[2] Acuidade visual é a capacidade do olho para distinguir detalhes espaciais, ou seja, identificar o contorno e a forma dos objetos. A acuidade visual depende de fatores ópticos e neurais: da nitidez que a imagem chega na retina, da saúde das células retinianas e da capacidade de interpretação do cérebro. http://www.lotteneyes.com.br/glossario-acuidade-visual/ Acesso em 23-04-2020.
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O professor Saulo César nos conta mais detalhes sobre a leitura e os desafios das novas tecnologias para deficientes visuais.
Tradicionalmente, o mês de março – no Brasil – é aquele em que o país “desperta” para o ano e se prepara para os demais meses. Com o mundo acadêmico, assim como o Sistema Educacional Brasileiro, não é diferente. Foi seguindo esse cronograma cultural, digamos assim, que me preparei para a redação do primeiro artigo do ano letivo.
No entanto, como todos vocês sabem, caros e caras leitore(a)s, o mundo começa a passar por um desafio humanitário, sem precedentes na historia da civilização. Aquilo que parecia, no final do ano de 2019, na China, ser apenas mais um surto “viral de gripe”, tornou-se uma pandemia que desafia os governos dos países do Globo. E, claro, isso não tem como ser ignorado ou desconsiderado em nossas vidas cotidianas.
Nesse verdadeiro cenário de guerra, em que nossas vidas são replanejadas cotidianamente, particularmente na área do ensino, em que as escolas, universidades, centros de treinamentos, entre outros, estão com suas atividades presenciais suspensas, vivenciamos uma era de incertezas! Um dos caminhos viáveis que vem despontando já há algum tempo é o uso das novas tecnologias da informação para suprir lacunas ou para facilitar o aprendizado a distância. No atual contexto, em diferentes níveis, ele está assumindo papel decisivo nos planejamentos pedagógicos e de pesquisa.
O processo de ensino/aprendizagem com alunos cegos também acompanha esse movimento, pois as tecnologias de acessibilidades desenvolvidas para o trabalho com esse segmento específico, têm avançado muito, ressaltando-se que foram desenvolvidas ferramentas de ponta para os aparelhos celulares mais modernos, largamente utilizadas.
Mesmo reconhecidas as vantagens do trabalho a distância com alunos cegos, o uso desses recursos tecnológicos não é pacífico entre os profissionais especializados. Alguns argumentos contrários estão embasados na ideia de que o uso excessivo dessa nova tecnologia afastaria o aluno deficiente visual do aprendizado da leitura e da escrita por meio do braile. Esse método, desenvolvido por Louis Braille, no século XIX, é considerado ainda, fundamental para o desenvolvimento cognitivo das pessoas com deficiência visual no processo de leitura e escrita. (1)
Diante do desafio da vida moderna e da sua dinâmica em busca e produção do conhecimento, o uso das ferramentas de acessibilidade torna-se peça-chave na inclusão de pessoas com deficiência visual. Entretanto, esse uso necessita de uma metodologia orientada para que não prejudique esses alunos. Nessa perspectiva, torna-se fundamental que os professores tenham domínio dessas ferramentas e as implicações do seu uso inadequado.
No trabalho de leitura, por exemplo, o texto em ambiente virtual apresenta características específicas, muito diferentes daquelas dos textos impressos. O hipertexto, por exemplo, é definido como um recurso importante na construção dos textos virtuais e, dependendo de como for utilizado, poderá prejudicar a formação desse aluno-leitor. Isso ocorreria porque se sabe que o hipertexto acrescenta infinitas informações a partir de uma informação primeira, construindo-se, sequencialmente, uma teia intertextual praticamente infinita. Muitos lidam com hipertextos o tempo todo, mas não conhecem essa nomenclatura. Simplificando esse conceito, o hipertexto é popularmente conhecido como: Hiperlinks, disponibilizados, por exemplo, nos editores de texto como o word.
A leitura define-se como construção de sentido, pois o leitor reorganiza o texto a partir do seu conhecimento de mundo, resultante do seu processo de letramento, dinamizando-se por meio de um processo cognitivo e social, recorrendo às memórias de curto (memória de trabalho) e de longo prazo (ou social), de acordo com V. Djik, 1992. Portanto, se durante a leitura de hipertextos não forem tomadas as medidas de orientação adequadas, esse processo poderá ser comprometido, criando-se uma espécie de “colcha de retalhos”, que se antagoniza com a ideia de construção de sentido.
Retomando o que dissemos no início deste artigo, estamos entrando em uma fase de incertezas, em que a escola, nós professores e a sociedade como um todo, ainda não sabemos bem como iremos atuar. O importante é termos, neste momento, as referências paradigmáticas ao alcance de nossas práticas pedagógicas, a aguardarmos os próximos passos com a certeza de que tudo se sairá bem.
Agradeço, mais uma vez, pela oportunidade e me coloco a inteira disposição, caso tenham algum questionamento.
Um abraço a todos e todas.
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Referências Bibliográficas
DIJK, Teun Van. Cognição, discurso e interação. São Paulo: Contexto, 1992.
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
KLEMAN, Angela. Oficina de leitura: teoria e prática. Campinas, SP: Pontes, 2001 (8ª. Ed.).
SILVA, Saulo César Paulino e. Leitura, subjetividade e construção do sentido. Novas edições acadêmicas, 2015.
(1) Embora essa seja uma discussão importante, não iremos aprofundar agora, deixando-as para falarmos em momento oportuno. pro
O professor Saulo César nos conta mais detalhes sobre a leitura e os desafios das novas tecnologias para deficientes visuais.
O professor Saulo César nos conta mais detalhes sobre a leitura e os desafios das novas tecnologias para
O artigo, deste mês de dezembro, de 2019, é mais uma conversa, não extensa, sobre inclusão, sua relação com o ensino de Língua Portuguesa, em sala de aula, e as políticas públicas.
Não raro, o senso comum costuma culpar o professor sobre o insucesso de algumas abordagens, no processo de aprendizagem da leitura, para ficarmos neste recorte.
Sem querer levantar bandeiras ideológicas, o fato é que há tempos os assuntos magistério, sala de aula, escola, dentre outros convergentes, suscitam polêmicas entre especialistas, transbordando para além das conversas formais da academia.
O tema se torna ainda mais delicado, quando é analisado sob o viés da inclusão de alunos com alguma deficiência. No caso deste artigo, delimitaremos essa reflexão para os alunos com deficiência visual, lembrando que esse termo é uma espécie de “guarda-chuva”, que abriga a cegueira congênita, a cegueira adquirida e a baixa-visão.
Ser professor ainda é um grande desafio, neste século XXI, em um país como o Brasil. Sabe-se, e não é de hoje, que dentre esses desafios, é possível apontar: os baixos salários, a falta de planos de carreira, má formação docente, prédios escolares precários, com o agravante da falta de um planejamento macro do Poder Público.
Essa ausência do Estado pode ser percebida, por exemplo, na omissão orçamentária para a Educação, em seus diferentes níveis, além da falta de proposições de políticas públicas, que atendam as diferentes necessidades do complexo cenário educacional.
Além dessa “macroproblemática” (permitam-me, aqui, o uso desse neologismo para ilustrar melhor a ideia), que se reflete, sem dúvida na sala de aula, e na prática docente, vem se somar outra, de cunho cultural e ideológico, que é o ensino de Língua Portuguesa, muitas vezes, descontextualizado e excludente.
A ideia de que a Língua Portuguesa “é uma língua difícil”, ou ainda, que não é “ensinada de acordo com a gramática normativa”, esconde, na verdade, um viés perverso de manutenção do status quo de determinadas camadas sociais, que, ao longo do processo histórico brasileiro, vêm se alternando no poder. (Entenda-se “poder” como a ocupação de postos-chave, nos quais são decididos os destinos da sociedade).
A respeito do aspecto ideológico, desta manutenção, o professor Marcos Bagno, da Universidade de Brasília (Unb), tem se debruçado sobre o tema, publicando inúmeros trabalhos . Só para ficar na ilustração, a obra “A língua de Eulália” apresenta uma discussão muito interessante sobre o preconceito linguístico. Preconceito este que permeia as relações sociais, inclusive nas escolas.
A dicotomia entre o “certo” e o “errado” é a tônica do livro, que instiga o leitor a refletir sobre o assunto. Levando-se em consideração que a Escola é o espaço para a interação e aprendizagem, onde o professor é o mediador, ironicamente é nessa mesma Escola que, muitas vezes, o aluno se descontextualiza, e consequentemente, se exclui (ou é excluído). Outra obra que nos leva a refletir sobre essa questão é “Linguagem e Escola”, em que o fracasso Escolar é apresentado, por meio de uma reflexão sobre uma Escola que não atende às necessidade do seu aluno. O livro foi escrito pela professora emérita da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, Magda Soares e, ao final deste texto, deixarei indicadas essas leituras.
Nessa perspectiva, tem-se, também uma ideia equivocada do aprendizado da leitura, que, a partir de uma visão tradicional, pode ser confundida com o reconhecimento de letras, sílabas e formação de palavras, ou seja: a decodificação. No entanto, inúmeros estudos linguísticos apontam para a necessidade de se conceber a leitura a partir de uma organização complexa do pensamento, em que ler é construir sentido, por meio de estratégias cognitivas de um indivíduo imerso em uma determinada cultura.
Até este momento de nossa explanação temos dois pontos negativamente relevantes: Primeiro: ausência do Estado, Segundo: o estigma do aprendizado de Língua Portuguesa (e consequentemente da leitura). Para agravar, ainda mais essa difícil equação, tem-se nesse cenário desfavorável, a presença de alunos com deficiência visual, na sala de aula regular e, quase sempre, um professor despreparado para atuar em cenários de diversidade.
A imagem que a sociedade constrói sobre o deficiente visual tem como referência o estereótipo da incompetência, da incompletude, da infelicidade, dentre outros, segundo Silva, 2009. Essa estereotipia marca, quase sempre, esse aluno, levando-o a desistência dos bancos escolares; e esse é um ponto nevrálgico, que merece ser comentado neste momento.
Se esse aluno com deficiência visual não é bem sucedido em seu processo de aprendizagem, é preciso uma análise cautelosa para se tentar identificar o problema. Não se trata, obviamente, de achar “culpados”, mas de compreender e interpretar o processo e para isso é preciso ter uma concepção mais ampla para além da sala de aula e das estratégias adotadas pelo professor.
Anteriormente, foi empregado o termo “macroproblemática”, que resume em seu escopo um conjunto de fatores que desaguam em um sistema educacional (quase) falido. Traduzindo essa percepção, o que procuramos alinhavar, nesta breve conversa, é o seguinte:
O sucesso de um processo inclusivo está atrelado a um conjunto de ações e/situações, que não dependerá, exclusivamente, da escola, do professor e do aluno (com deficiência).
Trocando em miúdos, para se aproveitar o dito popular, pode-se afirmar, primeiramente, que a verdadeira inclusão é resultante do compromisso do Estado, por meio de investimentos substanciais na área educacional, e na proposição de políticas públicas responsáveis, que favoreçam a concretização desse contexto.
Outro fator importante está relacionado com a qualidade na formação de professores, que deverão ter seus currículos embasados em conhecimentos teóricos substanciais, proporcionados por pesquisas no campo da Linguística Aplicada. Isso garantirá a esses profissionais da educação um instrumental capaz de auxiliá-los em uma prática pedagógica humana e eficaz.
Somando-se a essa formação, tem-se a urgência de se repensar o conceito de deficiência visual, eliminando-se o estigma da incompetência e da incompletude.
O papel de nossas Universidades é o de gerar conhecimento para a sociedade. Um país que não produz, apenas reproduz. Portanto estará fadado a se perpetuar como um pária na História da Humanidade. Por isso, a responsabilidade por uma sociedade verdadeiramente inclusiva é de todos nós, pois é preciso ver “além da visão”.
Agradeço aos leitores e leitoras, desta coluna, que acompanharam nossa trajetória neste ano de 2019.
Longe dos clichês, desejamos que 2020 seja um ano de conquistas, apesar das perspectivas serem ainda pouco favoráveis e que o compromisso da sociedade brasileira com a inclusão seja retomado de forma efetiva.
Um abraço a todos e todas.
Até o próximo ano.
Indicações para leitura
BAGNO, Marco. A língua de eulália. São Paulo: contexto, 2006.
SILVA, Saulo César da. Percebendo o ser. São Paulo: LCTE, 2009.
SOARES, Magda. Linguagem e escola: uma perspectiva social. São Paulo: ática, 1987.