Manhãs de abril, tardes de maio, noites de junho

Nesta crônica, a autora se remete às belezas e sensações dos meses de abril, maio e junho propiciam. Um convite para a contemplar a natureza!

Nesta crônica, a autora se remete às belezas e sensações dos meses de abril, maio e junho propiciam. Um convite para a contemplar a natureza!

O verão longo e quente iluminou a vida, dourou os corpos. De tão intenso que foi, desbotou e envelheceu as cores. Foram vários meses de calor. Março chegou e o verão foi se despedindo juntamente com suas chuvas. Abril chegou. Ares outonais vão se revelando na brisa fresca que roça a pele e provoca arrepios como se fora um lembrete para olhar o céu azul e sentir o frescor das manhãs de abril. As belas manhãs de abril.

Em maio são as tardes que ganham vida. Elas são muito claras, com sol brilhante ao longo do dia, mas que se recolhe mais cedo ao entardecer. Paira um ar romantizado no ar. Um convite aos casamentos tão sonhados pelas noivas.

A noite é a estrela no mês de junho. É ela que agrega todos os eventos do mês. O maior espetáculo nas noites de junho está no céu. Ele é límpido e permite ver uma infinidade de estrelas e também o Cruzeiro do Sul que orientou tantos navegadores europeus em suas longas viagens. Nas noites de junho também brilham as fogueiras nas festas ao Santo Antônio, São João e São Pedro.

Houve um tempo em o campo tinha muitos habitantes e eles podiam contemplar todos os movimentos da natureza. Mas, a vida urbana muda os hábitos e as pessoas. Elas acordam cedo e correm para o trabalho. Entram e suas salas e não veem a beleza das manhãs de abril. Outros ficam confinados e suas salas, com os olhos fixos nas telas de computadores ou celulares e não veem as belas tardes de maio. Em muitas cidades, nem mesmo nas noites de junho é possível ver as estrelas porque a poluição criou uma cortina que impede os olhos de admirar sua beleza.

As estações existem, ainda que não sejam tão definidas em grande parte de territórios do lado de baixo do Equador. Os seres humanos precisam de roupas diferentes, dependendo da estação. O outono é o prenúncio de que eles precisarão de roupas mais quentes. Nos corpos dos animais ele se mostra na troca dos pelos. Já nas as aves são as penas e penugens  que se vestem de cores novas e cobrem seus corpos. Pena que muita gente deixou de apreciar as manhãs de abril, as tardes de maio e as noites de junho. Contudo, sempre há aqueles que contemplam as mudanças das estações e esperam os bons ventos que elas trazem.

Elza Gabaldi é professora de português há mais de 30 anos e nesse espaço compartilha suas ideias!

 

Nesta crônica, a autora se remete às belezas e sensações dos meses de abril, maio e junho propiciam. Um convite para a contemplar a natureza!

Pequenos dicionários: memorização de vocabulário

A professora traz sobre a construção de pequenos dicionários e como pode ajudar na memorização de palavras e ampliação do vocabulário

A professora Elza Gabaldi traz uma dica sobre pequenos dicionários e como pode ajudar na memorização de palavras e vocabulário.

Foi-se o tempo em que os estudantes carregavam pesados dicionários de papel para a sala de aula. Agora ele está no celular ou no tablet. Apesar de sua grande importância, ele passou a ser desvalorizado depois que o tradutor entrou no caminho. A tecnologia tem ajudado muito, não há dúvida, mas será que consultar o tradutor a toda hora ajuda no aprendizado de uma língua?  Provavelmente sim. Recorrer ao tradutor a todo momento é suficiente? Provavelmente não.

Num mundo onde tudo parece estar pronto, em que num simples toque em uma tela se pode encontrar o que se quiser, parece que o dicionário já não satisfaz a expectativa do estudante. Ele deseja saber mais do que o significado da palavra. Ele quer frases, parágrafos e até textos inteiros traduzidos. Entretanto, no processo de aprendizagem de uma língua, fica claro que não há equivalência entre a facilidade que o tradutor proporciona e o aprendizado esperado.

O simples ato de jogar uma palavra, frases ou parágrafos no tradutor e imediatamente entender o significado pode propiciar bem-estar e dar a sensação de que houve a apreensão da palavra. Contudo, na prática, verifica-se que aquela informação que chegou tão rápido, rápido também se vai, já que o estudante se depara com a mesma palavra na aula seguinte ou em uma situação nova e não se recorda mais dela. Então, porque não alterar um pouco este fazer?

Não há saída fácil. Negar os recursos tecnológicos e as facilidades proporcionadas por eles não ajuda em nada. Ao contrário, são eles que amparam, ampliam a capacidade criativa, facilitam o trabalho, tornando-os tão próximos e práticos tanto para alunos como para professores.

Todavia, saber utilizar recursos tecnológicos não é garantia de aprendizado e sim de informação rápida.  Aprender uma língua requer mais do que conhecer o significado de uma palavra ou frase. Aprender requer internalização das relações que as palavras estabelecem entre si. É preciso atribuir-lhes sentido.  E neste quesito, até mesmo os algorítimos se atrapalham.

Então, que fazer com tantas opções disponíveis na internet? Como ensinar além do que a parafernália tecnológica oferece? Um dos recursos que sempre vale a pena recorrer está numa prática antiga:  construir um pequeno dicionário referente um tema específico, relacionado ao tema tratado em aula.

Com três perguntas básicas, é possível construir um pequeno dicionário e oferecer mais do que simples traduções ou informações de significados:

  1. “O que é?”           2. “Como é?”           3. “Para que serve?”

Estas perguntas também podem ser respondidas pelos tradutores encontrados nos aparelhos eletrônicos, mas nunca será respondida da mesma maneira no cérebro humano. O cérebro requer um tempo para fixar a nova informação. Por isso, produzir pequenos dicionários diários resulta na melhor memorização das palavras e ampliação do vocabulário.

Ao produzir o passo-a-passo de um pequeno dicionário, os resultados na apreensão do que foi estudado é bem maior devido ser um processo mais lento. Sendo mais lento, ele propicia a reflexão, entendimento e memorização das informações, transformando-as em conhecimento.

Construir pequenos dicionários pode dar a impressão de estar fazendo o que já foi feito, de repetir o que já está pronto na internet. Contudo, o que se está propiciando com este fazer é uma relação mais demorada, de um fazer que não se vale apenas uma tela, já que na escrita, outros relações se estabelecem, incluindo a atenção. Dessa forma, o estudante elimina a dependência do tradutor e acredita mais em si mesmo, em sua memória.

Eliminando a dependência entre o usuário e o aparato eletrônico, ele buscará em sua memória o que se propôs a aprender. Assim, ele altera o processo de recorrer a uma memória externa e passa a usar a interna, a sua memória. E a memória humana tem uma bateria bem mais longa do que as encontradas nos aparelhos eletrônicos, além de o acompanhar por qualquer parte do mundo, estando ou não conectado à internet.

Elza Gabaldi é professora de português há mais de 30 anos e mestre, escreve nesse espaço sempre que pode!

 

 

 

A professora Elza Gabaldi traz uma dica sobre pequenos dicionários e como pode ajudar na memorização de palavras e vocabulário.

Caminhar é preciso

Nessa Crônica, o caminhar é mais que percorrer um espaço. Trata-se de observá-lo e pensá-lo como o lugar onde se constroem sonhos.

Nessa Crônica, o caminhar é mais que percorrer um espaço. Trata-se de observá-lo e pensá-lo como o lugar onde se constroem sonhos.

Eram pouco mais de 16 horas. A tarde caminha para seu fim. A noite anterior foi longa porque o sono não veio. Rebelde, o Orfeu não quis comparecer e permitir o aconchego. No canto do quarto, os tênis pretos, como dois grandes olhos perguntam: e aí, vai ou não vai? Depois não reclame se não conseguir dormir. A advertência foi clara, não podia adiar a caminhada. Não importam as dores, a exaustão, a fadiga. O trajeto  é chegar ao parque.

Os pés, sempre doloridos e cansados, envoltos por meias, invadem aquelas covas escuras que agora fazem parte do corpo, fixados pelos cadarços.  Um após outro os passos percorrem as ruas. Nesta época, elas estão acanhadas, com pouco movimento devido à pandemia. O comércio também se recente, os clientes são poucos. São muitos os estabelecimentos fechados com placas de vende-se ou aluga-se. Outros estão abandonados e pichados. Um retrato triste de uma crise sem precedentes que gera também abandono.

Os passos precisam ser firmes e precisos, no mesmo ritmo para cumprir seu trajeto. Caminhar é preciso, parar não é preciso. Ah, Fernando, seja pessoa e compreenda: ir implica voltar. O lá é o ponto máximo a se chegar. Lá está ele, o parque.

Agora ele é aqui e os passos revelam novas situações. Os tons infindáveis de verdes das árvores, desde os mais claros aos mais escuros, brilhantes e opacos, enchem os olhos de beleza. As bicicletas, skates e corredores passam mais rápidos em contraste com os mais velhos que caminham lentamente, assim como os pais que diminuem o ritmo de seus passos para acompanhar os de suas pequenas e encantadoras crias.

No parque os passos seguem os caminhos mais tranquilos, aqueles com poucas pessoas, uma busca de tranquilidade e paz. E ali, naqueles locais menos freqüentados, há uma coletânea de cenas se revelando: casais de namorados, abraçados, deitados sobre um tecido qualquer, como se fora o colchão mais macio e confortável do mundo, ilusão criada pelo deleite do namoro e pelo fervilhar dos hormônios.

Os passos seguem e mais adiante outra cena reveladora: uma mulher jovem, morena, de cabelos pretos, ondulados e soltos posa para uma fotógrafa. O marido acompanha um pouco afastado, pois o momento é dela. No vestido longo e branco, ela exibe a barriga avantajada e o orgulho de agasalhar uma vida que cresce dentro e em breve fora daquela barriga. Um registro de um tempo de duas vidas em uma.

A tarde vai caminhando juntamente com cada passo e o trajeto já é o de volta. Mas ainda há muito para percorrer e ver. Pais,  com seus pequenos pimpolhos, levaram as iguarias de um piquenique, antigamente chamado de  convescote. As palavras também caminham e tomam novos rumos na vida.

Cruzar com bicicletas com gente miúda na garupa ou na dianteira leva ao riso por ver cabelinhos voando e a sensação de liberdade nos rostos dos transportados e de satisfação dos que se aventuram a carregá-los. Experiências únicas que serão contadas nos passos que a vida.

Os passos dos cachorros são pequenos e rápidos. Seus donos, ora tentam acompanhar no mesmo ritmo, ora tentam reter aqueles mais afoitos que tudo querem cheirar ou mijar para marcar território, mas vão todos se deliciando do paradoxo de quem passeia quem. Será o dono quem passeia o cachorro ou o cachorro que passeia com o dono? Direta ou indiretamente, todos passeiam.

Ainda falta um pouco para sair do parque e cada passo importa. Há casais que encontraram um banco e estão sentados conversando, talvez fazendo novos planos ou apenas apreciando aquele momento.

Os passos agora se aproximam da saída do parque. Os pés cansados e doloridos rumam para casa, recompensados pela experiência vivida. Um após outro, passo após outro, as ruas vão sendo deixadas para trás, com todos os movimentos que as envolvem.

Abrir a porta, tirar os tênis, colocá-los num lugar ventilado para uma nova caminhada faz parte do ritual. O que ficou desse caminhar é a certeza de que o parque é um lugar onde nascem muitos sonhos. Caminhar é preciso.

Elza Gabaldi é professora há mais de 30 anos e reflete nesse espaço sempre que pode.

Nessa Crônica, o caminhar é mais que percorrer um espaço. Trata-se de observá-lo e pensá-lo como o lugar onde se constroem sonhos.

Nessa Crônica, o caminhar é mais que percorrer um espaço. Trata-se de observá-lo e pensá-lo como o lugar onde se constroem sonhos.

Aroma de um tempo: crônica sobre os sentidos

Nesta crônica, a escritora revela a importância dos sentidos para se desenvolver uma história. São os sentidos os reveladores de sua criação.

As manhãs eram frias, muito frias. O sol demorava a aparecer no meio do cafezal. Os pés de café eram bem altos perto de uma menina de seis anos. Os três irmãos mais velhos iam para a escola. Ela e a irmã menor acompanhavam os pais lavradores, jovens, de rostos cansados do árduo trabalho braçal. Sua função era brincar com a irmãzinha. Voltavam para casa à tarde. E já fazia frio outra vez.

Ainda escuro, antes do amanhecer, os pais se punham em pé, acendiam o fogão à lenha, esquentavam a água e faziam café. Era hora de recomeçar. Os irmãos iam para a escola, os pais com suas marmitas nas costas, seguiam para a lavoura de café com suas outras duas meninas.

Em certas épocas, depois de muito cuidar, os pés de café floriam. As ramas se enchiam de flores brancas, miúdas e cheirosas. Elas deviam ser doces porque as abelhas vinham e ficavam caminhando sobre aquelas florezinhas brancas por bastante tempo.

Mas, as flores duravam pouco, logo desapareciam. Em seus lugares surgiam uns carocinhos verdes que iam crescendo dia após dia. Já crescidos começavam a mudar de cor. Começavam a ficar amarelos, depois alaranjados, vermelhos e depois pretos.  Estando mais pretos do que vermelhos, era tempo da colheita.

Monitorados de pequenos cassetetes de madeira dura, improvisados das árvores do local, os pais batiam nos galhos de café para que os grãos caíssem. Logo depois usavam rastelos e faziam montes. Os montes eram abanados em peneiras de arame para serem ensacados.

Próximo da casa havia um grande terreiro de cimento onde se espalhava o café logo de manhã. Conforme o sol esquentava, o café devia ser mexido para que o calor do sol em contato com o cimento apressasse a secagem dos grãos. Depois de seco era ensacado novamente para ser vendido. Mas o café para o consumo da família ficava reservado.  Ele deveria ser consumido pela família até a próxima colheita.

E o café regava as bocas e gargantas de todos em todas as manhãs e também em noites quando aparecia uma visita. O café colhido, seco, guardado cru, era torrado de tempos em tempos para ser consumido.

Era como um ritual: acender o fogo, pegar o café, colocar no torrador e girar, girar até uma fumaça começar a sair do torrador. Ah, que cheiro bom exalava daquele trambolho redondo feito de lata sob aquele fogo. A alquimia se dava no processo de torrar o café.

A mãe ensinou que a cor do café torrado não poderia passar de marrom vivo, senão o café passaria do ponto, deixaria a bebida amarga.

E assim, entre cuidar, colher, secar e torrar, os anos passaram. A labuta, a família, a dureza da vida do campo e o cheiro e gosto do café temperando a vida.

O tempo passou, a vida mudou. Mudando para a cidade perdeu-se o contato com a natureza abundante em beleza e miserável para quem a cultiva.

Já não mais se torra café na casa. Compra-se pronto. Mas ele continua a acompanhar cada manhã, cada membro da família, menos os que se foram, a mãe, o pai, um dos irmãos.

A menina do passado, agora mulher, aquece suas manhãs frias. Ela sorve o café, com uma xícara na mão, olhando a rua, sentindo o gosto do café, ajudando-a a despertar nas manhãs e a animar-se em algumas tardes.

Ela busca um gosto específico, aquele gosto de café torrado, na cor marrom viva que nunca mais foi encontrado. Os cafés de agora são todos mais escuros e mais amargos. E todos os dias, em cada gole de café, sua boca busca aquele sabor que pertence a um tempo, um tempo em que o café tinha outro sabor. Ele agora é outro e tem gosto de saudade.

Elza Gabaldi é professora já mais de 30 anos e escreve neste espaço sempre que pode.

Tobias

A professora Elza Gabaldi escreve uma coluna sobre a vida e como gestos simples podem transformar a vida de um ser, além de trazer alegria!

A professora Elza Gabaldi escreve uma crônica sobre a vida e como gestos simples podem transformar um ser, além de trazer alegria!

Tobias vivia abandonado. Feio, sujo, magro, mal nutrido e perambulava pelas ruas. Comia o que encontrava jogado no chão, só bebia água da chuva ou aquela que escorre ao lado das calçadas. Cansado de vagar de um lugar a outro, resolveu se fixar no espaço aberto de um posto de gasolina situado numa esquina, um ponto comercial muito importante. Por ali passam muitos carros todos os dias. Às vezes, os carros são tantos que há filas para abastecer.

Os funcionários do posto, vendo aquele ser tão maltratado, resolveram cuidar dele: passaram a alimentá-lo. Afinal, sentir fome é um grande sofrimento e dói muito em qualquer um e, dividir comida é dividir vida.

Sempre que vou pegar estrada, abasteço no posto em que vive o Tobias. Os funcionários do posto, amáveis como sempre revisam o óleo, a água, calibram os pneus e lavam os vidros do meu carro.

Saí no domingo de manhã em destino ao interior para visitar minha irmã. Parei no posto para abastecer e seguir viagem. Curiosamente, não vi o Tobias por ali. Achei estranho.  Perguntei a um dos funcionários onde ele estava, pois eu não o via há alguns dias. O rapaz me respondeu que ele tinha ido ver os preços da concorrência. Rimos muito. E o funcionário acrescentou: ele é o gerente da parte de manhã; à tarde, o gerente é o Santos. Rimos muito outra vez.

O funcionário do posto terminou o trabalho, eu paguei minha conta e dei uma caixinha para ele. Ele guardou o dinheiro da caixinha numa caixa que funciona como um cofre. No início de cada mês, a soma alcançada é dividida por igual entre os funcionários. Um dinheirinho extra sempre ajuda. Uma pena não ter visto o Tobias naquele dia.

Passei outro dia pelo local e o vi alegre e fogoso. Ele finge não se importar com nada, mas  sabe tudo o que acontece ao seu redor. Já não é magro, nem gordo. Mantém a elegância. Seus pelos agora têm vida e ele também. De vez em quando ele resolve latir para um carro ou outro que passa por ali. Mas é só para fazer média. Ele não ataca ninguém. Precisa honrar a raça e por isso se expressa como cachorro que é dando uns latidos de vez em quando.

O Tobias teve sorte. Aqueles funcionários não são apenas bons para ele. São bons também para os clientes. Eles são prestativos, simpáticos, eficientes e trabalham duro todos os dias para ganhar a vida dignamente.

O Tobias continua por lá. Participa indiretamente de tudo, menos da caixinha. Desconhece o que é caixinha, mas contribui com ela quando se mostra tão bem cuidado.   Os funcionários  daquele posto de gasolina puseram fim àquela vida de cão que Tobias levava. Ele é um cão sortudo.

Elza Gabaldi é professora de português há mais de 30 anos e escreve crônica sobre a vida e tua que lhe vier à cabeça.

Acesse as crônicas de Elza, escritas de professor para professores, clicando aqui.

Sophya

Nessa coluna a professora Elza Gabaldi traz uma história de sala de aula sobre o desafio e crescimento de uma estudante de PFOL.

Sophya era este seu nome. Estava parada no corredor em frente à porta da sala de aula onde eu estava com outros alunos que aprendiam português. Aquela jovenzinha de 13 ou 14 anos, apertava fortemente contra o peito uma pasta com cadernos e coisas de escola, onde repousava o queixo numa tentativa de esconder seu nervosismo.

A mãe chegou, entrou na sala e me explicou que ela tinha chegado da China há dois dias e iria iniciar suas aulas de português. Percebi que uma espécie de febre a invadia diante do mundo novo que teria de enfrentar. Os olhos tinham um brilho extra, daqueles que mostram o medo do que está por vir, juntado à timidez natural de tantas meninas chinesas que conheci.

Indiquei a carteira onde ela poderia se sentar, o que ela obedeceu imediatamente como quem precisa se apoiar em algo para se sentir mais seguro. Nada mais pude oferecer que meu sorriso e uma folha com o alfabeto em letras bastão para que ela copiasse. Era tudo o que eu podia fazer naquele momento.

Ela continuava assustada, mas como a cultura chinesa prima pela cópia, ela foi relaxando e arriscava um olhar do canto de olho para observar como eu reagiria ao conferir como ela estava copiando.

O ano transcorreu tão rapidamente quanto seu desenvolvimento. Ela recebeu ajuda e carinho de outros professores e respondeu prontamente a todos os estímulos. No fim do ano prestou uma prova para ingressar no ensino formal. Foi aprovada. Estudava de manhã no colégio e à tarde no curso  de reforço devido sua dificuldade com as disciplinas da área de humanidades: nunca ouvira falar em Grécia antiga, não sabia que existia. Os livros de literatura adotados não foram lidos. A distância de um texto em mandarim – com caracteres –  para um texto literário em língua portuguesa exige muito mais do que conhecer letras,  palavras,  frases e até mesmo parágrafos.

Vi naquela jovenzinha que se preparava para a vida, um modelo de ser humano dedicado, obediente e educado que trazia naqueles olhos de traços orientais mais interrogações do que  os meus ocidentais,  poderiam responder. Olhos “glandes” como os alunos chineses me diziam. Acho que naqueles olhos rasgados e pequenos tinham tantas Chinas quantos tantos Brasis havia nos meus.

Sophya seguiu por aqueles longos e antigos corredores do Colégio com a desenvoltura de quem conquista algo grandioso. Aquela segurança de se sentir pertencente a um mundo que já não era tão distante e estranho quanto foi em sua chegada.  Já manifestava sua dificuldade de entender História. “Era muito difícil, dizia”.

Um dia, uma mãe chinesa entra desesperada em minha sala de aula e falou muitas coisas que eu não podia entender. Ela falava em mandarim ou algum dialeto chinês. Eu precisava de alguém para traduzir a aflição daquela mãe para eu poder ajudar em alguma coisa. E Sophya estava lá e traduziu a preocupação e a angústia daquela mãe para o português: o filho não fora  para casa, ficou no colégio e não avisou a mãe.

Foi assim que Sophya se mostrou tão completa, tão chinesa e tão brasileira, estando apenas há um ano no Brasil. A Sofia tão discutida desde a Grécia Antiga se fez presente ali, em minha frente, naquele corpo e nome de menina, revelando-se um grande ser humano.

Elza Gabaldi é professora de português para nativos e estrangeiros. Idealizadora deste site e amante de leitura. Escreve nesse espaço sempre que pode!

Porque somos professores e humanos!

Ao se aproximar o Dia dos Professores, Elza Gabaldi descreve uma experiência dolorosa quando um de seus alunos faleceu.

A frase mais dita e divulgada no 15 de outubro é “Feliz dia dos Professores”. Uma homenagem àqueles que preparam outros seres humanos para as várias funções na sociedade, inclusive para aquelas que ainda não existem.

A frase, ainda que nobre e justa, está distante da realidade daqueles que têm por ofício ensinar. A profissão de professor é uma das mais arriscadas do mundo, já que cada aluno é um mundo a ser descoberto. São mistérios que todos os dias tentamos desvendar. E, diferentemente da imagem criada ao longo da história que somos “detentores do conhecimento” sabemos que somos seres que amam o conhecimento, mas como todos os seres  humanos, temos limitações.

Se perguntarmos aos professores os fatos que mais os marcaram, todos terão uma infinidade de histórias. São mundos que se revelam todos os dias diante deles. E, sendo assim, elas podem ser lindas e maravilhosas, mas também o seu contrário. São livros abertos com histórias que precisam ser contadas e lidas.

Na trajetória de mais de trinta anos sendo professora, a retina de meu olhar se deteve mais tempo em alguns acontecimentos. Eles me ensinaram tanto quanto os muitos livros que li. São acontecimentos que marcaram minha vida para sempre. Produziram mais sentido e clareza em meu ser do que muitas teorias estudadas no meio acadêmico.

Neste ofício, mais aprendi do que ensinei. Conheci estudantes bons e maus. Inocentes, puros, tiranos e até mesmo perversos. Tem aqueles que se destacam em tudo, lideram grupos e estudos. Há também os que  se escondem de tudo, de difícil acesso. Nestes tudo é segredo. E ainda existem aqueles que, mesmo em tenra idade, mostram maturidade e caráter impecáveis. Um tecido raro que não sabemos onde o primeiro fio se inicia, nem onde irá terminar, mas tecemos junto com eles quando estamos ensinando.

E nesse tecer, precisei me traduzir em muitas línguas para me fazer entender. Nem sempre fui  compreendida, aceita ou amada. Contudo,  continuei entrando e caminhando pelas brenhas que se apresentavam a minha frente e sigo assim até hoje. Não foram poucas as vezes em que me deparei nas encruzilhadas e precisei fazer algumas escolhas que doeram muito, mas foram necessárias.

E, assim caminhando, minhas retinas por tantas vezes inundadas de lágrimas de alegria ou de tristezas, puderam registrar fatos que vi e vivi como professora. Muitas formaturas com risos, roupas novas, festas e lágrimas de separação. A cada formatura, muitas separações são feitas porque novos caminhos diferentes serão seguidos; as produções de textos, muitas vezes eram transformadas em verdadeiras confissões de medos, angústias e sonhos. Revelações de segredos registrados numa folha de papel e que meus olhos percorriam nas muitas noites antes de dormir e em longos fins de semana para devolvê-las o mais rápido possível ao seu redator. E, nas pequenas perguntas como “O que você achou de meu texto”, havia mais do que uma pergunta que nem sempre pude responder.

Vi alunos partindo, desistindo da escola. Novatos chegando e esperando um acolhimento. Outros,  chegavam querendo demarcar terreno e poder. Alguns tiveram doenças graves. O câncer deixou marcas profundas e também um quê de vitimismo em um deles. Era uma questão de tempo ele compreender que teve muita sorte e apoio para superar a doença. O ataque de asma de uma adolescente me ensinou o quão bom é respirar sem dor.  Mas nada marca mais do que a morte de um ser jovem e cheio de vida.

Ele foi cercado por outros adolescentes quando ia para sua casa. Eles o ameaçaram, xingaram. Naquele dia, se o grupo cometeu alguma violência física contra ele, eu nunca soube.

O pai dele, ao me ver no velório, não se cansava de  dizer: “Obrigado professora”. Eu assentia com a cabeça. Ele andava pela sala, caminhando em volta do caixão. A cada vez que passava por mim, contava um pouco do que tinha acontecido. “Ele sofria do coração”, disse”. “Ficou muito assustado com a ameaça do grupo de rapazes”. “Depois se sentiu mal e não resistiu…”

“Ele queria muito uma motinha para ir para a escola. Eu comprei, continuou o pai. “Ele estava feliz professora…” “Obrigado professora…” “Obrigado professora…”

No dia seguinte, ao voltar para a sala de aula, não encontrei aquele rosto moreno, sorridente e calmo. Também não encontrei os mesmos sorrisos na face dos seus colegas e amigos de sala de aula. Estavam mudados, tristes e calados. A perda os fez amadurecer muito rápido, de um dia para o outro. Era o mês de outubro, mês que se comemora o Dia dos Professores.

Aprendi que todos os dias são Dia dos Professores. São dias bons e dias difíceis marcados por acontecimentos que permanecem no coração e na memória para sempre. Sim, somos professores, humanos e imperfeitos. Sabemos que nem sempre temos respostas mediante a tantos mistérios e grandiosidade da vida.

 

Elza Gabaldi é professora de português para nativos e estrangeiros há 30 anos.  Para ler suas outras colunas, clique aqui.

A linguagem da pandemia

A professora Elza Gabaldi fala sobre a pandemia e seus reflexos na linguagem em nosso dia-a-dia que nunca mais será igual!

Segundo Victor Hugo, as palavras têm a leveza do vento e a força da tempestade. O que seria mais leve do que um vírus? O que seria mais difícil de controlar do que uma pandemia?

Na escola, ao estudarmos os prefixos gregos, aprendemos que o prefixo epi significa propagação. Então, epidemia é a propagação de uma doença contagiosa em uma região. Aprendemos também que o prefixo pan significa sobre, por inteiro, todos. Não foi complicado saber como o vírus se espalhou pelo mundo todo e vivemos uma pandemia.

Vivenciar as palavras nos ajuda a entendê-las e usá-las. E para melhor as representarmos, damos novos significados à elas. A quarentena é um laboratório para muitas criações. Está na natureza humana a força criativa.  A linguagem é de longe uma força criativa extraordinária.

Tudo começou quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) alterou o nome Coronavirus para Covid 19. Ainda que muitos desconheçam seu significado (Corona Virus Disease), rapidamente tomaram posse dele e criaram outros. Um deles é covidiota. Esta palavra se refere àquelas pessoas que não respeitam o isolamento ou tomam medidas estranhas como estocar alimentos e papel higiênico. Mais recentemente, temos os anti-máscaras e os máscaras no queixo.

A influência da língua inglesa não quis ficar por baixo. Mostrou-se forte durante a pandemia. Quem pôde trabalhar em casa fez home Office. Quem perdeu emprego trabalhou nos serviços domésticos. E não foi nem é nada fácil para muita gente. Quando todos estão dentro de casa, o trabalho é sem fim. Depois do primeiro mês de pandemia, sair para procurar trabalho não adiantava, estava tudo fechado. A hashtag (#) fique casa bombardeava e ainda bombardeia a todos.

Mas como surgiram palavras em inglês, ficou mais complicado. Existem pessoas que não entendem esse uso num país de língua portuguesa. Então,  elas saiam, iam para as ruas. Aí não teve jeito. Algumas autoridades adotaram o Lock down, o que piorou tudo porque as pessoas não sabiam que estas duas palavras significavam fechamento total.

O entendimento foi forçado com polícia descendo o sarrafo naqueles que não sabiam o que era lock down. Governadores ameaçaram localizar as pessoas rastreando seus celulares, mandaram prender mulheres indefesas e também trabalhadores simples que saiam em busca de seu ganha-pão. Os juízes, fizeram o oposto: mandaram soltar os maiores corruptos do país, ladrões e maridos agressores, colocando a sociedade em maior perigo do que a própria pandemia. Uma vergonha nacional. Não houve tradução, mas poderia ser “A national shame”?

O povo, na sua criatividade, simplificou o que os meios de comunicação importaram. Adotou para o famigerado lock down o nome “tranca-ruas”. Ficou bem mais fácil de entender. Inclusive, apelidou como tranca-ruas alguns governadores que ameaçaram prender e multar quem saísse. A palavra tranca-ruas serviu para reavivar na memória das pessoas a herança africana presente em nosso idioma e em nossa alma.

Com o tempo a população entendeu que não se tratava apenas de um surto. Da epidemia que se iniciou na China, vimos a sua transformação em pandemia. E com o prefixo pan, também aprendemos que as autoridades, os meios de comunicação e as redes sociais fizeram um pandemônio com a palavra vírus, tão leve que veio pelo ar sem que olhos nus pudessem ver.

A população, em meio ao jogo de interesses que se transformou a pandemia adotou a panacéia. Era melhor assim, já que a desinformação vinha das próprias autoridades responsáveis que se diziam combatê-la. Mas, o pior medo aconteceu com uma nova palavra que apareceu, o “Covidão”, uma praga da corrupção que imita outra, mais antiga, o “Mensalão”.  Estas palavras são piores do que a pandemia porque tem uma vida muito longeva por estas bandas. Elas matam ao longo do tempo milhares e milhares de pessoas, principalmente os mais pobres.

E assim, nas tragédias e nas comédias vão se criando novas palavras. Porém, algumas que não foram criadas agora e é de domínio de todos não podem ser esquecidas: a justiça e a esperança. A população espera que tudo isso não acabe em pizza e que as autoridades não lavem as mãos como Pilatos fez.

As pessoas aprenderam a lavar as mãos, literalmente e buscaram se proteger de acordo com suas condições. Aprenderam novas palavras e o poder delas. E por isso mesmo estão tristes e decepcionadas porque descobriram que as palavras com prefixo grego epi e pan, ainda que tão antigas são melhores do que covidão, que rima com ladrão.

Elza Gabaldi é professora de português e espanhol com 30 anos de experiência. Escreve nesse espaço sempre que quer!

Tantas máscaras

Nessa crônica a professora Elza Gabaldi escreve sobre a raiz etmológica, usos reais e figurados de "máscaras", tão vistas nesses tempos!

Nessa crônica a professora Elza Gabaldi escreve sobre a raiz etmológica, usos reais e figurados de “máscaras”, tão vistas nesses tempos!

E, de repente, em pleno século vinte e um, as máscaras estão na maioria dos rostos. São brancas, pretas, coloridas, estampadas, maiores e menores. Algumas conseguem ser até bonitas; outras parecem ter saído dos laboratórios da NASA.
O latim medieval registra a palavra máscara como masca. Passou para o italiano com maschera e significa espectro, pesadelo. Não há comprovação, mas dizem que em árabe, maskhara significa palhaço, bufão.

As máscaras fazem parte da história da humanidade. Na China, as máscaras eram usadas para afastar os maus espíritos. Na Grécia e Egito eram inseridas sobre o rosto dos falecidos, na crença da passagem para a vida eterna. Na Ásia, estão presentes tanto nos ritos espirituais como nas cerimônias de casamento.

Máscaras de Beijing
Máscaras de Beijing

Elas eram usadas nos teatros e representavam situações verdadeiras. Ainda permeia o universo da imaginação, uma busca coletiva para as dimensões abstratas, espirituais e invisíveis. Os rituais sagrados da África demonstram isso. Os indígenas norte-americanos as usavam nos momentos em que os seus entes queridos partiam desta vida. Os esquimós do Alaska acreditavam na face dupla de cada ser e assim elas eram feitas, com duas faces. Já os indígenas brasileiros portavam máscara simbolizando animais, pássaros e insetos.

Ao que tudo indica, no momento atual, as máscaras retornam, tomando seus lugares como foi com os povos antigos. Assim como nas tribos primitivas, em que os índios mais velhos as usavam em cerimônias de cura para expulsar entidades negativas, agora, pautada na ciência, pode ajudar a evitar o contágio do vírus que assola a humanidade.

E mostram-se soberbas nos rostos de todos os povos do mundo. Já não faz parte de ritos, mas de uma necessidade imposta pela realidade que, provavelmente, mudará muitas relações humanas estabelecidas no processo histórico.

Para além das máscaras concretas que vemos nos rostos das pessoas que encontramos nas ruas, há muitas outras, de variadas nuances se apresentando. A variação se dá principalmente nos discursos que são propalados todos os dias, todas as horas e que visam sempre interesses particulares.

Nos rostos de políticos, elas são travestidas de verdades, como se fossem uma representação teatral através das palavras ajuda, socorro, segurança, preservação da vida. No entanto, na prática, as palavras são transformadas em desmandos autoritários: prenderam mulheres, trabalhadores e até crianças sem que tenham cometido nenhum crime. O motivo alegado é “o não uso da máscara”.
Nas caras dos juízes elas se camuflam sob o nome liberdade. Liberdade cedida chefes do tráfico, quando deveriam deixá-los confinados e a políticos corruptos que assaltaram os cofres públicos e zombaram dos trabalhadores honrados. A máscara de justiça se estende até a estupradores que são liberados sob o argumento de que na prisão, o vírus pode ser fatal para eles. São descarados mascarados de representantes da lei e da ordem.

As máscaras são muitas. E, muitas vezes são tão bem elaboradas que conseguem enganar. Elas estão nas caras dos líderes que foram instituídos para governar nações, países, estados e municípios. Muitos se dizem infectados e se encastelam em suas boas casas. Mas pergunta fica: como foram contaminados se eles conheciam as regras? Usam a máscara da mentira de diferentes formas porque já não sabem quais são os verdadeiros princípios da cara humana.

No transcorrer dos anos e até séculos, também o mundo esteve escondido por trás de uma grande máscara. Ela escondia de muitos a verdadeira chaga que mata mais do que vírus: a desigualdade social. São milhões de pessoas que não têm água limpa para beber, muito menos para lavar as mãos. Praticamente metade da população mundial que mora em periferias, não possui saneamento básico. Suas casas são amontoados de paredes onde a privacidade de uma família inexiste. Sair de dentro delas é mais seguro do que permanecer ali.

Já não se pode mascarar a realidade dizendo que é preciso se esforçar mais para melhorar de vida. Seria o mesmo que acusar grande parte da população mundial de vagabunda. Uma máscara que precisa ser desmistificada.

O mundo pós-pandemia deixou cair muitas máscaras e exige uma nova face. Nela, as escolas não serão mais um lugar para as crianças irem matar a fome de comida, mas sim de conhecimento e desenvolvimento de seus talentos; os hospitais não serão mais depósitos de gente pelos corredores e seus profissionais terão formação e recursos para se manterem íntegros mental e fisicamente; os seres humanos terão condições básicas para sobreviver com dignidade.
Uma face com o nome de esperança travestida de mais justiça social.

Elza Gabaldi é professora de português para nativos e estrangeiros há 30 anos. Para ler suas outras colunas, clique aqui.

 

 

Nessa crônica a professora Elza Gabaldi escreve sobre a raiz etmológica, usos reais e figurados de “máscaras”, tão vistas nesses tempos!

A minha rua

Crônica: "Rua linda, linda rua, a minha rua. Nela, ao amanhecer todos passam depressa, buzinando, querendo que o que está na frente saia da frente."

Escrevi a primeira parte desta crônica em 13/02/2019. Termino em 21/03/2020.

Crônica: "Rua linda, linda rua, a minha rua. Nela, ao amanhecer todos passam depressa, buzinando, querendo que o que está na frente saia da frente."

Rua linda, linda rua, a minha rua. Nela, ao amanhecer todos passam depressa, buzinando, querendo que o que está na frente saia da frente. Com pressa, não vêem a beleza da minha rua.

Ao anoitecer ela se transforma: os que foram depressa, já voltaram depressa, já buzinaram, já xingaram os que estão na frente  e continuaram a acreditar que tinham preferência.

Depois do horário de pico, uma certa magia a envolve. Ainda passam muitos carros, mas passam também os pedestres, passa quem passeia com seus cachorros, as mães de mãos dadas com seus filhos pequenos que saíram das escolas, passam pais com os filhotes no cangote. E de lá de cima, do ombro dos pais, eles olham o mundo. Os velhinhos, em seu lento caminhar, os bebês empurrados por mães ou babás, passam todos na linda rua, a minha rua.

Na minha rua estou, nela passo, nela vou, nela volto, nela fico. É um pedaço do mundo onde meu mundo se concentra. Quando meu olhar se perde por minha rua, meus pensamentos vão  para longe, muito longe, até onde nem eu mesma sei, pois minha rua é o começo do que desejo conhecer.

Meus olhos, ao percorrê-la, vêem a beleza da minha rua. Eles sabem que nela entrei, nela vivi, nela sonhei, dela partirei e comigo a levarei. Tão linda rua, a minha rua.

Minha rua

Crônica: "Rua linda, linda rua, a minha rua. Nela, ao amanhecer todos passam depressa, buzinando, querendo que o que está na frente saia da frente."Minha rua continua linda, mas ao amanhecer vejo poucos carros e poucas pessoas por ela passar. Já não há tanta urgência em ir e em voltar. Há mais silêncio e menos buzinas. Os olhos, taciturnos, continuam presos a algo externo à beleza daminha rua.

No crepúsculo, poucos são os que voltam para casa porque poucos puderam ir. Os velhinhos desapareceram,pois são eles o grupo de maior risco. Com eles se foram os seus fiéis companheiros, os cãezinhos. As mães e as crianças já estão na minha rua. Já não há carrinhos de bebês ainda que o clima seja convidativo.

Tão vazia está a minha linda rua. Também eu pouco posso estar nela porque o momento é de recolhimento.

E, da janela de meu apartamento olha para minha rua vazia. De repente vejo apenas uma pessoa atravessá-la. É uma mulher jovem. Ela é moradora de rua. Mora em todas as ruas, não apenas na minha linda rua.

A minha linda rua agora é toda dela. Ela não demonstra medo, pois a rua é seu único abrigo.

Minha linda rua é tão solitária agora. E meus olhos esperam ver de novo, as pessoas indo e vindo na minha linda rua.

 

Elza Gabaldi é professora de português para nativos e estrangeiros há 30 anos. Também leciona espanhol e escreve neste espaço toda semana.