Nesses artigos e colunas você encontrará muitas informações relevantes sobre deficiência visual e sua relação com o ensino de línguas.
Queremos contribuir com a inserção da língua portuguesa e seu ensino no cenário mundial. Sendo uma das mais faladas do mundo, com presença em todos os continentes, achamos urgente ajudar os professores de PLE/ PFOL ou como língua de herança na tarefa de trazer materiais interessantes e atualizados com o que está acontecendo atualmente.
Nessas colunas e artigos nossos professores também querem falar sobre a inserção da deficiência visual na educação. Venha discutir conosco!
Temos certeza de que nossos materiais podem ser úteis para suas aulas! Deem uma olhada em nosso acervo. Tem alguma sugestão? Nos contate através de nossas mídias sociais ou diretamente pelo Whatsapp.
Produção textual com alunos deficientes visuais a partir das noções de coesão, coerência e intencionalidade
A sala de aula é um complexo mosaico de diferentes realidades. Ela se apresenta como se fosse uma orquestra cuja responsabilidade e intencionalidade de regê-la está sob égide do maestro a quem caberá harmonizar os instrumentos, mantendo-os coesos e coerentes com a intencionalidade de executar com primor partitura apresentada.
Levando-se em conta essa metáfora, e transpondo-a para a realidade educacional, em particular das escolas públicas brasileiras, descortinam-se inúmeros desafios para os profissionais da educação.
No ensino de Língua Portuguesa, principalmente nos anos finais do ensino médio, as aulas de redação têm se mostrado desafiadoras e, não raro, apresentando resultados aquém do esperado com alunos videntes. Agora, imaginemos essa realidade aplicada aos alunos com deficiência visual!
A primeira questão que se nos apresenta é: por que os alunos, de maneira geral, apresentam baixo desempenho na construção e organização textual? Uma resposta definitiva e objetiva seria uma “aventura” perigosa que poderia resvalar na superficialidade de uma visão sem cientificidade ou critérios metodológicos.
Por isso proporemos algumas reflexões, levando-se em conta 03 elementos importantes dos fundamentados na Linguística de Texto: a coesão, a coerência e a intencionalidade.
Para iniciarmos, primeiramente, vamos retomar a metáfora da orquestra, onde os alunos seriam os músicos, a produção textual deles os instrumentos e o professor, o maestro responsável pela harmonização e execução da peça musical.
Partindo dessa perspectiva, iremos agora, contextualizar esse “músico” e seu “instrumento” para a realidade do aluno cego, cujas características são bem distintas do aluno vidente, ou seja, aquele sujeito que não apresenta comprometimento em sua acuidade visual.
Para se compreender o universo da pessoa com deficiência visual, torna-se necessário, primeiramente, despir-se de todo e qualquer preconceito que se tenha adquirido ao longo da vida. Os estereótipos de incompletude, comiseração, incompetência, dentre outros permeiam a discriminação, ainda que isso ocorra de maneira involuntária.
Basicamente, as limitações visuais que acometem grande parte da população deficiente visual estão baseadas em três grandes classificações que iremos, resumidamente, apresentar a seguir.
Cegueira Congênita: a pessoa nasce sem a visão ou poderá perdê-la antes dos 05 anos de idade por motivos de enfermidades degenerativas ou de má formação do sistema visual. Isso ocasiona a não organização da chamada “memória visual”, importante para o desenvolvimento cognitivo.
Cegueira Adquirida (ou tardia): a pessoa é acometida da perda visual total por algum trauma que causa alguma lesão do globo ocular, ou em algum outro órgão da visão, após os 05 anos de idade. Nesse período, o indivíduo já tem desenvolvida a memória visual que contribuirá para a compreensão do mundo e sua interpretação.
Baixa Visão: a pessoa apresenta diferentes graus de comprometimento visual, mas ainda utilizará algum resíduo (visual) para a execução de tarefas, como por exemplo, a leitura de textos com auxílio de ampliadores de tela e outros acessórios que poderão auxiliá-la. Nestes casos, a memória visual também estará preservada.
Acreditamos que o conhecimento (e reconhecimento) dessas características em seus alunos poderá auxiliar o professor a planejar estratégias pedagógicas que contemplem as necessidades específicas de cada caso. Por isso, independentemente da atuação desse professor ser ou não em sala de recursos, os conhecimentos básicos sobre a deficiência visual se tornam fundamentais em sua formação. Em nosso próximo artigo, pretendemos trazer e apresentar alguma dessas estratégias.
Após essa breve introdução, gostaríamos de propor uma reflexão de como trabalhar a produção textual com alunos deficientes visuais, tomando por base a coesão, a coerência e a intencionalidade. Na teoria da Linguística Aplicada, os três elementos citados são imbricados, porém singulares.
Para se refletir sobre essa perspectiva, torna-se necessário rever os conceitos de texto seja no âmbito oral ou escrito. Levando-se em consideração que a textualidade vai muito além de seus aspectos gramaticais e sintáticos, faz-se necessário concebê-la como uma unidade significativa de comunicação que está relacionada ao contexto onde é produzida, assim como aos interlocutores envolvidos nesse processo.
A produção do texto escrito poderá ser trabalhada pelo professor, levando-se em consideração os três elementos descritos acima, considerando a partir da linha teórica da Linguística de Texto, que, em seu conjunto, poderá auxiliar os alunos deficientes visuais na redação de bons textos a partir de seu conhecimento de mundo.
Para que essa estratégia apresente resultados satisfatórios, será necessário em um primeiro momento, apresentar aos alunos os conceitos de coesão, coerência e intencionalidade de forma lúdica e bem simplificada, somando-se ao (re)conhecimento das necessidades específicas de cada aluno com essas características. Isso será fundamental para que a “orquestra” não desafine.
O conceito de coesão é definido como a organização dos elementos gramaticais do texto, tornando-se responsável por sua “ampliação”. Em outras palavras: a expansão necessária para atender a intencionalidade de seu produtor. Essa expansão está relacionada com a estrutura microestrutural do texto.
Por outro lado, a coerência está relacionada com a macroestrutura do texto, ou seja, com os sentidos globais do enunciado, tornando-se responsável pela construção de sentido. Portanto, ao se considerar um texto como “uma boa produção”, estaremos levando em consideração os aspectos macro e microestrutural, isto é, textos que apresentem coesão e coerência. No entanto, nessa perspectiva, poderemos também encontrar textos coesos e sem coerência, ou ainda, textos coerentes e sem coesão.
Para se falar a respeito de intencionalidade é necessário levar em consideração aspectos importantes como o contexto onde o texto foi produzido, assim como a ideologia subjacente à materialidade linguística expressa na organização do enunciado. De acordo com Koch e Elias (2006)¹, qualquer produção textual, oral ou escrita, apresenta uma intenção, ou seja, uma motivação que levará o autor a determinado posicionamento. Portanto, nessa ótica, a ideia de “neutralidade” perde significado, pois de acordo com a teoria da Linguística Textual, não há textos neutros. Toda e qualquer produção está imbuída de uma intencionalidade, consciente ou não.
Resumidamente: a intencionalidade organiza as informações textuais a partir de um planejamento prévio descrito da seguinte forma: 1. O que falar; 2. Para quem falar; 3. O quanto falar; 4. De que maneira falar.
Após o reconhecimento do universo e as necessidades específicas do aluno com deficiência visual, assim como a importância da coesão, coerência e intencionalidade, no momento de se redigir um texto, acreditamos que o professor estará instrumentalizado para planejar, desenvolver e executar atividades pedagógicas eficazes nas aulas de Língua Portuguesa.
Dessa forma, acreditamos que o “maestro” estará aptopara a execução de uma obra, pautada na eficácia textual em que os músicos e os instrumentos se harmonizam na construção de um cenário propício para o aprendizado.
Como foi comentado anteriormente, em nosso próximo artigo traremos algumas sugestões de atividades, que poderão ser trabalhadas com alunos deficientes visuais durante as aulas de produção textual a partir das discussões apresentadas neste texto.
Agradeço pela atenção de todos vocês. Se acharem o texto interessante, podem compartilhar ou comentar no espaço desta coluna.
Até uma próxima oportunidade.
KOCH, Ingedore V. e ELIAS, Vanda M. Ler e Escrever – estratégias de produção textual. São Paulo: Contexto, 2009.
Prof. Saulo César Paulino e Silva escreve nesse espaço todo mês, para ler suas outras colunas, clique aqui.
Continuando a coluna do professor Saulo César, seguimos com a segunda parte.
Caso não tenha lido a primeira, basta clicar aqui.
IDENTIFICAÇÃO DAS EXPRESSÕES MODALIZADORAS NOS GRUPOS SOB INVESTIGAÇÃO
A análise será apresentada de modo resumido, dadas as características e finalidades de um artigo como este. A leitura dos protocolos, referentes às expressões modalizadoras, de acordo com modelos estudados na fundamentação teórica, permitiu identificar os seguintes usos: 1. Expressão aproximativa, com valor pragmático de incerteza ou imprecisão, com relação ao outro ou ao objeto descrito (heteroavaliação); 2. Expressão aproximativa, com valor de incerteza ou imprecisão, com relação à própria elaboração do falante (autoavaliação).
Os protocolos dos grupos de controle e focal revelaram resultados interessantes, que foram organizados nos quadros resumitivos 1 e 2, apresentados a seguir. No primeiro quadro, foram identificadas as expressões aproximativas mais empregadas pelos participantes do Grupo de Controle. No quadro 2, foram também identificadas as expressões aproximativas mais utilizadas pelos participantes do Grupo Focal.
QUADRO RESUMITIVO COM EXPRESSÕES APROXIMATIVAS MAIS EMPREGADAS / GRUPO DE CONTROLE
EXPRESSÕES APROXIMATIVAS
Participantes
Valor pragmático de incerteza/empregos
Imprecisão com relação a própria elaboração do falante
GC2-SF-1
Uma certa
Parece que
Praticamente
02
1
1
Acho que
Talvez
De certa forma
Necessariamente
Não sei se
Assim
8
5
2
1
1
1
GC2-SF-2
Parece que
Assim
Acho que
1
1
1
Acho que
Quase
Talvez
Achei
9
1
1
1
GC1-SM-1
Acho que
Realmente
Aparentemente
Acredito que
Parece que
Parece
Achei
12
2
2
1
1
1
1
Acho que
Assim
Parece
Parece que
5
2
1
1
SUBTOTAL
223
39
QUADRO RESUMITIVO COM
EXPRESSÕES APROXIMATIVAS MAIS EMPREGADAS /GRUPO FOCAL
EXPRESSÕES APROXIMATIVAS
Participantes
Valor pragmático de incerteza/empregos
Imprecisão com relação a própria elaboração do falante
GF1-SF-1
Imagino que
0
11
Acho que
Não sei se foi bem
isso
Assim
3
1
1
GF2-SF-2
As vezes
Acho que
1
1
Acho que
Talvez
2
1
GF1-SM-1
Acho que
3
–
–
GF1-SM-2
–
Acho que
3
SUBTOTAL
10
11
Para exemplificar esta análise, serão apresentados dois recortes dos protocolos. O primeiro foi extraído do Grupo de Controle e o segundo do Grupo Focal.
RECORTE 01 – GRUPO DE CONTROLE
Linhas 62 –70 / Trecho – 05
Pesquisador: tá bom a narrativa/ durante a narrativa em algum momento
62.1 despertou em você a vontade de de ver as imagens? (+)
GC2-SF-2: nossa, então curiosamente não ((risos)) eu imaginei que iria, mas não,
.não porque :: é:: mas assim / acho que / porque a narração é muito bem feita , a
65.mulher que narra ela coloca cada palavra do título muito certeiro, eu consigo
66.construir a imagem, interpretar e pegar o sentido ((inaudível)) da entonação dela
67.Pesquisador: Tá
GC2-SF-2: muito bem feito, todo momento/ o momento em que ele está criando,
momento em que ele ((inaudível)) eh momento de tensão a narração dela foi eh foi
.suficiente acho que pelo modo como ela faz / eu senti
A leitura do trecho, destacado acima, revela na linha 64, o emprego da expressão aproximativa de dúvida da falante “acho que” como forma de organização da resposta proposta pela pergunta do pesquisador. A participante procurou demonstrar que o texto audiodescrito foi suficiente para informar ao leitor sobre o conteúdo da história, não deixando dúvida quando diz: “a narração é muito bem feita”. Mais adiante, na linha 70, a participante retoma a sua tese inicial observando que foi possível entender a proposta temática do vídeo, quando afirma que “foi suficiente (…) pelo modo como ela faz (narração)”.
RECORTE 02 – GRUPO FOCAL
GF1-SF-1
Linhas 11–16 / Trecho – 02
11.Pesquisador: e você acredita que a a audiodescrição ela foi importante nesse
12.processo pra você entender a proposta desse vídeo?
13.GF1-SF-1: sim, sim foi, mas na verdade eu:: eh acho que eu / um texto inteiro por
ser só uma vez é pouquinho mais difícil de conseguir captar a audiodescrição, pelo
15.menos eu tenho uma dificuldade, assim, de da primeira vez que eu ouço, conseguir 16.absorver tudo
A análise da expressão modalizadora “achar que”, em seu contexto interativo, revela que os participantes a empregaram provavelmente intencionando assegurar sua opinião a partir da pergunta realizada pelo pesquisador. Nesse sentido, tem-se a expressão aproximativa de incerteza “achar que”, como elemento organizador do argumento, comum entre os participantes com deficiência visual e o pesquisador, seguindo estratégias semelhantes às do grupo de controle.
A MENSURAÇÃO DE ALGUNS RESULTADOS
O uso das expressões modalizadoras de proximidade pelos participantes do grupo focal, ao serem comparados com o grupo de controle, apresentou algumas sequências que se aproximaram ao emprego realizado pelos videntes, sem, no entanto, perder as suas particularidades. As convergências estão no emprego das expressões modalizadoras de proximidade explícitas; aquelas em que os falantes revelam a sua opinião, ao fazerem o uso da primeira pessoa (eu), por exemplo, flexionando o verbo modal epistêmico, relacionado ao emprego do pronome “que”. A expressão modalizadora de proximidade mais empregada no grupo composto por indivíduos com deficiência visual foi “acho que”, conforme se poderá conferir no quadro resumitivo 2. Com esse resultado, inferimos que o uso de expressões modalizadoras, formadas por “acho que”, pelos participantes com deficiência visual, evidencia um posicionamento mais seguro, mais “concreto”, em relação ao objeto audiodescrito, levando em conta que a percepção de mundo dessas pessoas passa por um processo tátil-cinestésico, ou seja, é preciso sentir o objeto em suas mãos, percebê-lo com o tato para interpretá-lo. Dessa maneira, quando o participante se posiciona em primeira pessoa, fala a partir de um mundo conhecido, onde se sente seguro, pois tem como referências sua própria experiência de pessoa com deficiência visual.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMIRALIAN, Maria Lúcia T. M. Compreendendo o cego através do procedimento de desenhos-história:uma abordagem psicanalítica da influência de cegueira na organização da personalidade. Tese de Doutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo,1992.
GONÇALVES, S. C. L. LIMA-HERNANDES, M. C. & CASSEB-GALVÃO, V. C. (org.). Introdução à gramaticalização: princípios teóricos e aplicação. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.
KOCH, Ingedore Villaça e TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Texto e coerência. São Paulo: Cortez, 2005.
MELO, H. F. R. de. Deficiência visual: lições práticas de mobilidade. São Paulo: Unicamp/Pontes, 1991.
NEVES, Maria Helena de Moura. Texto e gramática. São Paulo: Contexto, 2006. _____. Uma Visão Geral da Gramática Funcional. Revista Alfa (online), São Paulo, Vol. 38: 109-127,1994. E-ISSN: 1981-5794. Disponível em http://seer.fclar.unesp.br/alfa/article/view/3959. Acesso em 14/05/2017.
NUNES, I. E.; DOURADO, L. Concepções e práticas de professores de Biologia e Geologia relativas à implementação de ações de Educação Ambiental com recurso ao trabalho laboratorial e de campo. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, v. 8, n. 2, p. 671-691, 2009.
SACKS, Oliver. Um antropólogo em marte. São Paulo: Cia das Letras, 2005.
SANTOS, Gabriela Loureiro et al. A gramaticalização do verbo achar no português do Brasil sob um ponto de vistas diacrônico. Revista Revele. No. 05, 2013. Disponível em file:///C:/Users/MCP3/Downloads/4351-12248-1-SM.pdf. Acesso em 19/05/2017.
SILVA, Saulo César da. Percebendo o ser. São Paulo: LCTE, 2009.
ZANOTTO, Mara Sophia. Indeterminação, metáfora e a construção negociada do sentido: uma contribuição para o ensino da leitura – Projeto integrado. PUC-SP, 2002.
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Originalmente um artigo, apresentamos agora em formato de coluna e para esse propósito foi dividido em duas partes.
INTRODUÇÃO
Pesquisar a construção de sentido pela pessoa com deficiência visual, por meio das marcas modalizadoras em seu discurso, exige a percepção de um olhar atento sobre o objeto analisado, que vai além das referências visuais dos videntes[1]. Ao se falar em deficiência visual, é fundamental, primeiramente, descrever, resumidamente o seu conceito e a importância da audiodescrição como ferramenta de acessibilidade, pois ainda é tema pouco explorado no universo das pesquisas acadêmicas.
O termo deficiência visual, não raro, é empregado, genericamente, pelo senso comum, como relacionado às pessoas que “não enxergam”. No entanto, um aprofundamento nos estudos relacionados ao assunto, remete-nos para definições próximas, porém, particularizadas, pois envolvem diferentes graus de comprometimento da acuidade visual.
Nessa perspectiva, identificam-se dois grupos organizados da seguinte maneira:
Primeiro Grupo: Composto por deficientes visuais, que interpretam o mundo por meio de percepção tátil-cinestésica e auditiva. Esse grupo está subdividido em cegos congênitos e tardios. Os cegos congênitos são aqueles que já nasceram sem visão e, portanto, segundo os estudiosos do tema, não apresentam memória visual. Por outro lado, pode-se afirmar que há estudos que defendem a ideia de que se a perda da visão ocorrer a partir dos 05 anos de idade, esse indivíduo apresentará memória visual. Os cegos tardios se caracterizam pela perda da visão, ao longo da vida, por ações externas como traumas no nervo ótico, perfurações do cristalino ou ainda ocasionada pela progressividade de doenças degenerativas como a retinose pigmentar, exemplificada nas imagens a seguir.
Figura 1.Degeneração dos Fotorreceptores retinianosFiguras 3 e 4. simulação comparativa entre a visão normal e a visão comprometida
Segundo Grupo: Composto por indivíduos que apresentam grave comprometimento da visão denominado baixa visão. No entanto, diferentemente do grupo anterior, a interpretação do mundo, assim como a execução de tarefas cotidianas, se faz também com o auxílio da visão residual.
A concepção classificatória em dois grupos foi adotada para facilitar a organização da nossa pesquisa, embora ainda persista, na prática, certa falta de consenso. É o que depreendemos na alternância no uso dos termos deficiente visual e cego, por exemplo, em MELO, 1991. Por outro lado, a proposta de AMIRALIAM, 1992 dispõe esses rótulos numa espécie de continuum, baseado no impacto da doença e na funcionalidade biológica dos olhos. Nessa perspectiva, o deficiente visual estaria alocado num ponto de menor impacto se comparado à rotulação de cego, o indivíduo com mais amplo comprometimento da visão. Para fins metodológicos, no entanto, empregaremos o termo deficiente visual como uma classificação mais genérica, envolvendo os diversos tipos de comprometimento da acuidade visual[2] e a partir dessa generalização, a organização das seguintes subdivisões: a) cegos congênitos; b) cegos tardios; c) baixa visão, já mencionadas anteriormente.
Historicamente, as pessoas com deficiência visual foram excluídas dos processos produtivos nas sociedades ocidentais, tornando-se marginalizadas, isoladas e submetidas a tratamentos assistencialistas. Essa ação segregacionista começou a ceder espaço a partir do final do século XX, mais precisamente em meados dos anos de 1980, acentuando-se nos anos de 1990, adentrando nesta primeira metade do século XXI. Lendo-se os inúmeros documentos importantes, relacionados com a adoção de ações efetivas para a inclusão de determinados grupos marginalizados, é possível destacar a Convenção sobre os Direitos da Criança (1988); Declaração Mundial sobre Educação para Todos (1990) e Declaração de Salamanca (1994).
Dentre esses materiais documentais, que impulsionaram o movimento inclusivo, destaca-se a Declaração de Salamanca, que alinhavou o compromisso dos países signatários, dentre os quais o Brasil, durante os Governos Populares, no desenvolvimento de políticas públicas afirmativas em que as pessoas com alguma deficiência obtivessem oportunidades de participação social. No entanto, lamentavelmente, estamos presenciando a perda paulatina dessas conquistas, a partir do momento em que houve uma ruptura com a perspectiva social.
Naquele contexto, as pessoas com alguma deficiência passaram a ter o direito de trabalhar, desfrutar de atividades de lazer, participando de eventos socio-culturais como teatro, shows, cinemas, exposições fotográficas, entre outros, tornando-se, também, consumidores desses bens culturais e neste grupo social também os deficientes visuais. Foi a partir da mudança de paradigma social, que começaram a ser gestadas diferentes ferramentas de acessibilidade, e, posteriormente implementadas, pudessem atender a essa nova demanda, facilitando a interação dessas pessoas com o mundo a sua volta.
A audiodescrição, embora relativamente recente no Brasil, veio ao encontro dessa tendência, suprindo uma lacuna, que torna possível para a pessoa com deficiência visual compreender um evento artístico, podendo, intuir, dessa maneira, sua própria construção perceptiva. O conceito para audiodescrição está associado, segundo MOTA e ROMEU FILHO, 2010, ao recurso de acessibilidade que oportuniza a interação de pessoas com deficiência visual em eventos culturais, gravados, como é caso dos filmes, por exemplo, ou ao vivo, como é o caso das peças teatrais e óperas. Outra definição importante, apresentada por VIEIRA LIMA, 2010, conceitua a audiodescrição como uma modalidade de tradução que permite passar de uma linguagem imagética para uma linguagem verbal, objetivando-se a fidelidade da informação original.
Nesse escopo social recente, em que as pessoas com deficiência conquistaram voz, abrindo espaços interativos, a sociedade passou a contar com a presença de muito mais cidadãos; contexto em que a audiodescrição ganhou significado cada vez mais relevante. A especificidade da audiodescrição para transformar imagens em texto, caracterizando-se como gênero narrativo, proporcionou investigar a ativação dos mecanismos linguísticos na recepção das informações audiodescritas a partir do projeto discursivo-pragmático, ou seja, efeitos de sentido e intenções comunicativas. Isso justificou nossa preocupação com uma pesquisa científica que teve como principal objetivo investigar e identificar a construção de sentido pela pessoa com deficiência visual a partir dos inputs proporcionados pela audiodescrição.
Cabe salientar que essa construção de sentido poderá ocorrer por meio de diferentes estratégias cognitivas dos participantes dos grupos de pessoas deficientes visuais e videntes, observando-se as marcas linguísticas de opinião, definidas como expressões modalizadoras de proximidade. Para isso, foram analisadas as funções discursivo-pragmáticas, referidas anteriormente, relativas às expressões modalizadoras, considerando-se a intenção do falante.
Durante a análise dos protocolos, tanto do grupo focal, quanto do grupo de controle, foi possível identificar o uso de alguns verbos epistêmicos de opinião e, de uma maneira geral, das expressões modalizadoras. Isso nos chamou a atenção, pois, embora esses verbos estejam na primeira pessoa gramatical, esse tipo de flexão caracteriza, na maioria das vezes, os verbos deônticos.
Nesse caso específico, segundo NEVES, 2006:
uma expressão tende menos para uma interpretação deôntica quando está na terceira pessoa, e mais quando está na primeira, enquanto a modalidade epistêmica se associa mais com a terceira pessoa e menos com a primeira. Entretanto, os verbos de opinião (epistêmicos) são característicos de primeira pessoa (…) ( 189). (Grifo Nosso).
É preciso salientar, entretanto, que as expressões modalizadoras não se limitam aos verbos, observado anteriormente, podendo, ainda, ser classificadas em expressões implícitas ou explícitas (BALLY, 1942, apud NEVES, 2006, 170). Contudo, levando-se o caráter funcionalista de boa parte da base teórica, desta pesquisa, trataremos tão somente das explícitas como, por exemplo, “acho que”, “parece que”, “talvez”. Os falantes, ao comentarem sobre o vídeo, consomem maior tempo para as expressões aproximativas, em que há uma dúvida implicada, do que para as necessidades e possibilidades. Essa é a razão por que decidimos nos determos na análise da gradação das expressões aproximativas.
JUSTIFICATIVA DA CLASSIFICAÇÃO DAS EXPRESSÕES MODALIZADORAS E SUA FUNÇÃO NO ENUNCIADO
Partindo-se do pressuposto de que a definição de expressões modalizadoras, ainda não é consensual, levando-se em consideração o número de diferentes linhas teóricas que as estudam, tem-se, como resultado, certa “flexibilidade” conceitual a seu respeito, conforme assinala NEVES, 2006, 151. Nesse sentido, é importante observar que a modalização, a partir do universo linguístico, caracteriza o uso das línguas naturais nos mais diversos contextos socioculturais. Nessa perspectiva, faremos a delimitação, como já apontado, de nos concentrarmos nas expressões modalizadoras explícitas, embora essas expressões não sejam estáticas, caracterizando-se ora com valor pragmático de incerteza, ora com valor de incerteza na própria elaboração do falante. Portanto, há momentos em que o falante apresenta alguma dúvida em relação ao objeto interpretado em outras situações apresenta incertezas a partir de uma autorreflexão na construção argumentativa.
Os contextos em que essas expressões foram empregadas possibilitaram, ao pesquisador, mensurar, ainda que subjetivamente, as intencionalidades que o seu uso procura garantir, quando do emprego de estratégias que visam aceitabilidade. Para sustentar essa mensuração, é fundamental partir de dois pontos imbricados: a intencionalidade do ponto de vista linguístico e o processo de gramaticalização que o verbo “achar” nas expressões modalizadoras tanto de incertezas pragmáticas, quanto de dúvidas e incertezas na própria elaboração do falante.
Do ponto de vista comunicacional KOCH, 2010, afirma que no processo interacional, a intencionalidade está baseada na intenção do produtor, a aceitabilidade compreende o modo com que o receptor reage à informação. Nesse sentido, a aceitabilidade dependerá da aceitação da produção por parte do interlocutor como um processo informacional coeso e coerente (KOCH, 2009ª, 43).
METODOLOGIA
Para a coleta de dados, foram organizados dois grupos: 1. Grupo de Controle, composto por alunos universitários videntes do curso de pós-graduação da USP com idades entre 18 e 30 anos. 2. Grupo Focal, composto por alunos da LARAMARA, com diferentes comprometimentos na acuidade visual, com idades semelhantes.
Os encontros para a coleta de dados foram realizados na LARAMARA e na Universidade de São Paulo, nos quais foram projetados o vídeo audiodescrito “Perfeito” e, posteriormente, aplicado o protocolo verbal individual, que, de acordo com SILVA, 2009 (apud ZANOTTO, 2010) é definido como um método subjetivo no qual o participante opina sobre algum evento, emitindo um ponto de vista a partir do questionamento do entrevistador/pesquisador, sendo o evento registrado por meio de gravação em vídeo ou áudio.
Primeiramente, foram entrevistados os participantes do grupo de controle e, na sequência, os participantes do grupo focal. A seguir, apresentaremos, resumidamente, uma análise comparativa entre os protocolos dos participantes de ambos os grupos e os resultados obtidos.
[2] Acuidade visual é a capacidade do olho para distinguir detalhes espaciais, ou seja, identificar o contorno e a forma dos objetos. A acuidade visual depende de fatores ópticos e neurais: da nitidez que a imagem chega na retina, da saúde das células retinianas e da capacidade de interpretação do cérebro. http://www.lotteneyes.com.br/glossario-acuidade-visual/ Acesso em 23-04-2020.
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O professor Saulo César nos conta mais detalhes sobre a leitura e os desafios das novas tecnologias para deficientes visuais.
Tradicionalmente, o mês de março – no Brasil – é aquele em que o país “desperta” para o ano e se prepara para os demais meses. Com o mundo acadêmico, assim como o Sistema Educacional Brasileiro, não é diferente. Foi seguindo esse cronograma cultural, digamos assim, que me preparei para a redação do primeiro artigo do ano letivo.
No entanto, como todos vocês sabem, caros e caras leitore(a)s, o mundo começa a passar por um desafio humanitário, sem precedentes na historia da civilização. Aquilo que parecia, no final do ano de 2019, na China, ser apenas mais um surto “viral de gripe”, tornou-se uma pandemia que desafia os governos dos países do Globo. E, claro, isso não tem como ser ignorado ou desconsiderado em nossas vidas cotidianas.
Nesse verdadeiro cenário de guerra, em que nossas vidas são replanejadas cotidianamente, particularmente na área do ensino, em que as escolas, universidades, centros de treinamentos, entre outros, estão com suas atividades presenciais suspensas, vivenciamos uma era de incertezas! Um dos caminhos viáveis que vem despontando já há algum tempo é o uso das novas tecnologias da informação para suprir lacunas ou para facilitar o aprendizado a distância. No atual contexto, em diferentes níveis, ele está assumindo papel decisivo nos planejamentos pedagógicos e de pesquisa.
O processo de ensino/aprendizagem com alunos cegos também acompanha esse movimento, pois as tecnologias de acessibilidades desenvolvidas para o trabalho com esse segmento específico, têm avançado muito, ressaltando-se que foram desenvolvidas ferramentas de ponta para os aparelhos celulares mais modernos, largamente utilizadas.
Mesmo reconhecidas as vantagens do trabalho a distância com alunos cegos, o uso desses recursos tecnológicos não é pacífico entre os profissionais especializados. Alguns argumentos contrários estão embasados na ideia de que o uso excessivo dessa nova tecnologia afastaria o aluno deficiente visual do aprendizado da leitura e da escrita por meio do braile. Esse método, desenvolvido por Louis Braille, no século XIX, é considerado ainda, fundamental para o desenvolvimento cognitivo das pessoas com deficiência visual no processo de leitura e escrita. (1)
Diante do desafio da vida moderna e da sua dinâmica em busca e produção do conhecimento, o uso das ferramentas de acessibilidade torna-se peça-chave na inclusão de pessoas com deficiência visual. Entretanto, esse uso necessita de uma metodologia orientada para que não prejudique esses alunos. Nessa perspectiva, torna-se fundamental que os professores tenham domínio dessas ferramentas e as implicações do seu uso inadequado.
No trabalho de leitura, por exemplo, o texto em ambiente virtual apresenta características específicas, muito diferentes daquelas dos textos impressos. O hipertexto, por exemplo, é definido como um recurso importante na construção dos textos virtuais e, dependendo de como for utilizado, poderá prejudicar a formação desse aluno-leitor. Isso ocorreria porque se sabe que o hipertexto acrescenta infinitas informações a partir de uma informação primeira, construindo-se, sequencialmente, uma teia intertextual praticamente infinita. Muitos lidam com hipertextos o tempo todo, mas não conhecem essa nomenclatura. Simplificando esse conceito, o hipertexto é popularmente conhecido como: Hiperlinks, disponibilizados, por exemplo, nos editores de texto como o word.
A leitura define-se como construção de sentido, pois o leitor reorganiza o texto a partir do seu conhecimento de mundo, resultante do seu processo de letramento, dinamizando-se por meio de um processo cognitivo e social, recorrendo às memórias de curto (memória de trabalho) e de longo prazo (ou social), de acordo com V. Djik, 1992. Portanto, se durante a leitura de hipertextos não forem tomadas as medidas de orientação adequadas, esse processo poderá ser comprometido, criando-se uma espécie de “colcha de retalhos”, que se antagoniza com a ideia de construção de sentido.
Retomando o que dissemos no início deste artigo, estamos entrando em uma fase de incertezas, em que a escola, nós professores e a sociedade como um todo, ainda não sabemos bem como iremos atuar. O importante é termos, neste momento, as referências paradigmáticas ao alcance de nossas práticas pedagógicas, a aguardarmos os próximos passos com a certeza de que tudo se sairá bem.
Agradeço, mais uma vez, pela oportunidade e me coloco a inteira disposição, caso tenham algum questionamento.
Um abraço a todos e todas.
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Referências Bibliográficas
DIJK, Teun Van. Cognição, discurso e interação. São Paulo: Contexto, 1992.
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
KLEMAN, Angela. Oficina de leitura: teoria e prática. Campinas, SP: Pontes, 2001 (8ª. Ed.).
SILVA, Saulo César Paulino e. Leitura, subjetividade e construção do sentido. Novas edições acadêmicas, 2015.
(1) Embora essa seja uma discussão importante, não iremos aprofundar agora, deixando-as para falarmos em momento oportuno. pro
O professor Saulo César nos conta mais detalhes sobre a leitura e os desafios das novas tecnologias para deficientes visuais.
O professor Saulo César nos conta mais detalhes sobre a leitura e os desafios das novas tecnologias para
O artigo, deste mês de dezembro, de 2019, é mais uma conversa, não extensa, sobre inclusão, sua relação com o ensino de Língua Portuguesa, em sala de aula, e as políticas públicas.
Não raro, o senso comum costuma culpar o professor sobre o insucesso de algumas abordagens, no processo de aprendizagem da leitura, para ficarmos neste recorte.
Sem querer levantar bandeiras ideológicas, o fato é que há tempos os assuntos magistério, sala de aula, escola, dentre outros convergentes, suscitam polêmicas entre especialistas, transbordando para além das conversas formais da academia.
O tema se torna ainda mais delicado, quando é analisado sob o viés da inclusão de alunos com alguma deficiência. No caso deste artigo, delimitaremos essa reflexão para os alunos com deficiência visual, lembrando que esse termo é uma espécie de “guarda-chuva”, que abriga a cegueira congênita, a cegueira adquirida e a baixa-visão.
Ser professor ainda é um grande desafio, neste século XXI, em um país como o Brasil. Sabe-se, e não é de hoje, que dentre esses desafios, é possível apontar: os baixos salários, a falta de planos de carreira, má formação docente, prédios escolares precários, com o agravante da falta de um planejamento macro do Poder Público.
Essa ausência do Estado pode ser percebida, por exemplo, na omissão orçamentária para a Educação, em seus diferentes níveis, além da falta de proposições de políticas públicas, que atendam as diferentes necessidades do complexo cenário educacional.
Além dessa “macroproblemática” (permitam-me, aqui, o uso desse neologismo para ilustrar melhor a ideia), que se reflete, sem dúvida na sala de aula, e na prática docente, vem se somar outra, de cunho cultural e ideológico, que é o ensino de Língua Portuguesa, muitas vezes, descontextualizado e excludente.
A ideia de que a Língua Portuguesa “é uma língua difícil”, ou ainda, que não é “ensinada de acordo com a gramática normativa”, esconde, na verdade, um viés perverso de manutenção do status quo de determinadas camadas sociais, que, ao longo do processo histórico brasileiro, vêm se alternando no poder. (Entenda-se “poder” como a ocupação de postos-chave, nos quais são decididos os destinos da sociedade).
A respeito do aspecto ideológico, desta manutenção, o professor Marcos Bagno, da Universidade de Brasília (Unb), tem se debruçado sobre o tema, publicando inúmeros trabalhos . Só para ficar na ilustração, a obra “A língua de Eulália” apresenta uma discussão muito interessante sobre o preconceito linguístico. Preconceito este que permeia as relações sociais, inclusive nas escolas.
A dicotomia entre o “certo” e o “errado” é a tônica do livro, que instiga o leitor a refletir sobre o assunto. Levando-se em consideração que a Escola é o espaço para a interação e aprendizagem, onde o professor é o mediador, ironicamente é nessa mesma Escola que, muitas vezes, o aluno se descontextualiza, e consequentemente, se exclui (ou é excluído). Outra obra que nos leva a refletir sobre essa questão é “Linguagem e Escola”, em que o fracasso Escolar é apresentado, por meio de uma reflexão sobre uma Escola que não atende às necessidade do seu aluno. O livro foi escrito pela professora emérita da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, Magda Soares e, ao final deste texto, deixarei indicadas essas leituras.
Nessa perspectiva, tem-se, também uma ideia equivocada do aprendizado da leitura, que, a partir de uma visão tradicional, pode ser confundida com o reconhecimento de letras, sílabas e formação de palavras, ou seja: a decodificação. No entanto, inúmeros estudos linguísticos apontam para a necessidade de se conceber a leitura a partir de uma organização complexa do pensamento, em que ler é construir sentido, por meio de estratégias cognitivas de um indivíduo imerso em uma determinada cultura.
Até este momento de nossa explanação temos dois pontos negativamente relevantes: Primeiro: ausência do Estado, Segundo: o estigma do aprendizado de Língua Portuguesa (e consequentemente da leitura). Para agravar, ainda mais essa difícil equação, tem-se nesse cenário desfavorável, a presença de alunos com deficiência visual, na sala de aula regular e, quase sempre, um professor despreparado para atuar em cenários de diversidade.
A imagem que a sociedade constrói sobre o deficiente visual tem como referência o estereótipo da incompetência, da incompletude, da infelicidade, dentre outros, segundo Silva, 2009. Essa estereotipia marca, quase sempre, esse aluno, levando-o a desistência dos bancos escolares; e esse é um ponto nevrálgico, que merece ser comentado neste momento.
Se esse aluno com deficiência visual não é bem sucedido em seu processo de aprendizagem, é preciso uma análise cautelosa para se tentar identificar o problema. Não se trata, obviamente, de achar “culpados”, mas de compreender e interpretar o processo e para isso é preciso ter uma concepção mais ampla para além da sala de aula e das estratégias adotadas pelo professor.
Anteriormente, foi empregado o termo “macroproblemática”, que resume em seu escopo um conjunto de fatores que desaguam em um sistema educacional (quase) falido. Traduzindo essa percepção, o que procuramos alinhavar, nesta breve conversa, é o seguinte:
O sucesso de um processo inclusivo está atrelado a um conjunto de ações e/situações, que não dependerá, exclusivamente, da escola, do professor e do aluno (com deficiência).
Trocando em miúdos, para se aproveitar o dito popular, pode-se afirmar, primeiramente, que a verdadeira inclusão é resultante do compromisso do Estado, por meio de investimentos substanciais na área educacional, e na proposição de políticas públicas responsáveis, que favoreçam a concretização desse contexto.
Outro fator importante está relacionado com a qualidade na formação de professores, que deverão ter seus currículos embasados em conhecimentos teóricos substanciais, proporcionados por pesquisas no campo da Linguística Aplicada. Isso garantirá a esses profissionais da educação um instrumental capaz de auxiliá-los em uma prática pedagógica humana e eficaz.
Somando-se a essa formação, tem-se a urgência de se repensar o conceito de deficiência visual, eliminando-se o estigma da incompetência e da incompletude.
O papel de nossas Universidades é o de gerar conhecimento para a sociedade. Um país que não produz, apenas reproduz. Portanto estará fadado a se perpetuar como um pária na História da Humanidade. Por isso, a responsabilidade por uma sociedade verdadeiramente inclusiva é de todos nós, pois é preciso ver “além da visão”.
Agradeço aos leitores e leitoras, desta coluna, que acompanharam nossa trajetória neste ano de 2019.
Longe dos clichês, desejamos que 2020 seja um ano de conquistas, apesar das perspectivas serem ainda pouco favoráveis e que o compromisso da sociedade brasileira com a inclusão seja retomado de forma efetiva.
Um abraço a todos e todas.
Até o próximo ano.
Indicações para leitura
BAGNO, Marco. A língua de eulália. São Paulo: contexto, 2006.
SILVA, Saulo César da. Percebendo o ser. São Paulo: LCTE, 2009.
SOARES, Magda. Linguagem e escola: uma perspectiva social. São Paulo: ática, 1987.
Nessa coluna o professor Saulo César fala sobre o sistema braile e dá breves noções de alfabetização para alunos cegos no ensino fundamental.
Prezados Leitores e Leitoras, primeiramente, quero agradecer pela oportunidade de compartilhar este espaço com tod@s vocês!
A troca de informações, a interação em busca de novos conhecimentos, é fundamental para que tenhamos uma concepção salutar e progressista a respeito da construção de uma sociedade cada vez mais inclusiva, mesmo que ventos contrários soprem desfavoravelmente, nestes tempos de hoje.
Durante o meu caminhar acadêmico, não raramente, me deparei com algumas questões relacionadas ao ensino do braile e a alfabetização, que me chamaram a atenção. No entanto, e de acordo com a proposta deste espaço, farei apenas alguns recortes, para contextualizar melhor sobre o tema, sem um aprofundamento academista. Se o (a) Leitor (a), posteriormente, se interessar em ler mais sobre o assunto, deixarei, ao final deste artigo, algumas indicações em forma de sugestões.
Em cursos e palestras, ministrados ao longo desses últimos anos, conversei com diversos professores que, quase sempre, ao se referirem ao sistema braile, faziam-no sinonimicamente à Língua de Sinais – LIBRAS. Porém é preciso esclarecer essa problemática, tornando-se fundamental o estabelecimento da diferença conceitual entre um termo e outro.
O vocábulo composto “sistema braile” indica que essa é uma ferramenta acessível e universal, que converte as diversas línguas, de diferentes culturas, em sinais táteis, organizados a partir de uma lógica sistematizada. Logo adiante, falaremos um pouco mais sobre essa concepção. Por outro lado, a sigla LIBRAS representa o termo “Língua Brasileira de Sinais”.
E qual será a diferença substancial entre “sistema” e “língua”?
Resumidamente, pode-se afirmar que o braile organiza as diferentes línguas a partir de uma sistematização, combinando pontos em relevo, dentro de um espaço denominado cela braile, para serem lidos e interpretados, a partir da percepção tátil; também é aplicado a sinais matemáticos e musicais. Por outro lado, a LIBRAS é uma língua viso-espacial (Língua de Sinais) que, por sua vez, apresenta estrutura gramatical, sintática e semântica próprias, dentro de uma determinada cultura. Inclusive, hoje, é reconhecida pela Lei 10.436, do ano de 2002, parágrafo único. (1), como a primeira Língua da Comunidade Surda no Brasil.
A respeito da importância das leis, e em particular a 10.436, para a Comunidade Surda, Moura, 2014, afirma:
Que as leis sejam aliadas e possam fazer com que a ações sociais sejam de real valia, fazendo com que elas possam servir àqueles que elas servem: os cidadãos, todos e quaisquer, independente das diferenças que possam ter. (pág. 59).
A partir dessa diferenciação, falaremos um pouco mais sobre o sistema braile.
O sistema braile: contextualizando
No momento histórico do surgimento das escolas para cegos, viveu Louis Braille e sua trajetória de vida acabou criando condições para que desenvolvesse o mais revolucionário método de leitura e escrita para o deficiente visual até os dias de hoje.
Braille nasceu na França em 1809, na pequena cidade de Coupvray, nas cercanias de Paris. Filho de Monique Baron e Simon René Braille, que se notabilizou por ser um excelente seleiro (artesão) da região onde viveu. Desde muito pequeno, Braille brincava na oficina do pai com retalhos de couro empregados na confecção das selas. Em uma dessas ocasiões, o pequeno Louis, ao manusear uma suvela para tentar furar o couro, feriu-se no olho esquerdo. Devido a falta de tratamento medicamentoso, esse ferimento evoluiu para um quadro de conjuntivite e posteriormente agravou-se desenvolvendo oftalmia generalizada em seus dois olhos.
Braille, já adulto, ao conversar com um de seus amigos, que lia jornal para ele, soube de um capitão da artilharia, que inventara um meio para se comunicar com seus subordinados sem a presença de luz. Esse militar, chamado Charles Barbier de la Serre, denominava esse meio de comunicação como “escrita noturna”, composta de pontos e traços em relevo. Acreditava que esse sistema, conhecido também como sonografia, poderia ser usado por pessoas cegas, no entanto era, ainda, um sistema rudimentar e complexo.
Em 1823, Barbier visitou o Instituto Nacional dos Jovens Cegos de Paris, onde o seu sistema foi apresentado e bem recebido. Entre os alunos que prestigiaram essa apresentação, encontrava-se Louis Braille. Assim que soube da novidade, o jovem Braille entrou em contato com o seu inventor e procurou saber mais a respeito da nova técnica que era ainda limitada, pois não permitia que os sinais matemáticos ou a notação musical fossem representados.
A partir de então, Louis Braille desenvolveu uma técnica, que se inspirava na sonografia que permitia a representação e combinação, não só das letras do alfabeto, mas também dos símbolos matemáticos e das notações musicais, tornando-se conhecido até os dias atuais como método braile (ou sistema braile). Louis Braille faleceu no ano de 1852 em sua cidade natal e em meados do século XX seus restos mortais foram transferidos da cidade de Coupvray para o Pantheon, localizado em Paris em comemoração ao centenário de seu nascimento, (SILVA, 2014).
O método braile conhecido também como sistema braile
O método braile (2) é considerado um instrumento para leitura e escrita tátil e se caracteriza pela organização de seis pontos em relevo, dispostos em duas colunas de três pontos cada. Esse conjunto de seis pontos apresenta duas denominações: “cela braile” ou “célula braile”.
Nessa coluna o professor Saulo César fala sobre o sistema braile e dá breves noções de alfabetização para alunos cegos no ensino fundamental.
Fig. 01 Célula ou Cela Braile
A organização dos seis pontos possibilita a criação de 63 combinações ou símbolos braile. A combinação dos pontos 1-2-4-5 forma as dez primeiras letras do alfabeto. Para as dez letras seguintes, deve-se combinar as dez primeiras letras acrescidas no ponto 3, formando, assim, a 2ª linha de sinais. A organização da terceira linha é resultante do acréscimo dos pontos 3 e 6 às combinações da 1ª linha.
O alfabeto braile
Nessa coluna o professor Saulo César fala sobre o sistema braile e dá breves noções de alfabetização para alunos cegos no ensino fundamental.
Fig. 02
Alfabeto Braile (3)
Para o alfabeto, são empregados vinte e seis sinais, dez para os sinais de pontuação de uso internacional, correspondendo aos dez sinais da 1ª linha, localizados na parte inferior da célula braile: pontos 2-3-5-6. Os vinte e seis sinais restantes são destinados às necessidades especiais de cada língua (letras acentuadas, por exemplo) e para abreviaturas. Doze anos após a invenção desse sistema, Louis Braille acrescentou a letra “W” ao 10° sinal da 4ª linha para atender às necessidades da língua inglesa.
O sistema braile poderá ser empregado por extenso ou ainda de forma abreviada. Quando se diz por extenso, é porque se escreve a palavra letra por letra e de forma abreviada quando se adotam os sinais especiais de abreviaturas, de acordo com cada língua ou grupo linguístico. A forma por extenso é denominada pelos especialistas como grau 1; e o grau 2 é a forma abreviada para representar as conjunções, preposições, pronomes, prefixos e sufixos.
O principal objetivo para empregar a forma abreviada é reduzir o volume dos livros impressos em braile e aumentar o rendimento na leitura e na escrita. Uma série de abreviaturas mais complexas forma o grau 3, que necessita de um conhecimento profundo da língua, uma boa memória e uma sensibilidade tátil muito desenvolvida por parte do leitor. Isso porque o tato é também um fator decisivo na capacidade de utilização do sistema braile.
O emprego desse método pode se estender também à estenografia e às notações científicas entre outras com a possibilidade das 63 combinações em código especial. O braile é de grande eficiência, pois a sua universalidade poderá exprimir diferentes línguas de diversas partes do mundo.
Uma de suas principais vantagens é a possibilidade de o deficiente visual escrever com o auxílio de um reglete e do punção, exemplificados na imagem abaixo.
Nessa coluna o professor Saulo César fala sobre o sistema braile e dá breves noções de alfabetização para alunos cegos no ensino fundamental.
Fig. 03 (4) Reglete e Punção
O braile, por ser muito prático, abriu os caminhos do conhecimento literário, científico e também musical, permitindo que as pessoas com deficiência visual
mantivessem suas correspondências pessoais e ampliassem suas atividades profissionais. Todavia, na atualidade, essa tendência tem sido menos frequente entre as novas gerações. Isso se justificaria pela disponibilidade de tecnologia acessível, que tem facilitado a vida dos jovens com o uso de programas para computadores e celulares de maneira geral. Mas esse é um tema que merece um artigo exclusivo a ser apresentado em outra oportunidade.
Além do reglete e do punção, existem outras formas de se escrever empregando-se o sistema braile. Primeiramente, destacam-se as máquinas braile, que podem ser manuais ou elétricas, conforme ilustração a seguir.
Nessa coluna o professor Saulo César fala sobre o sistema braile e dá breves noções de alfabetização para alunos cegos no ensino fundamental.Nessa coluna o professor Saulo César fala sobre o sistema braile e dá breves noções de alfabetização para alunos cegos no ensino fundamental.
A School for the blind dos Estados Unidos é a pioneira na produção mundial de máquinas desse tipo de máquina. Mais recentemente, com o desenvolvimento das tecnologias assistivas, foram criadas e aperfeiçoadas as impressoras braile que imprimem a partir de qualquer computador. Hoje, podem ser encontrados vários modelos para atender as mais diversas necessidades. Abaixo, apresentamos a ilustração de um modelo dessas impressoras.
Nessa coluna o professor Saulo César fala sobre o sistema braile e dá breves noções de alfabetização para alunos cegos no ensino fundamental.
Fig. 6 (7) Modelo de impressora braile pequena
Passos iniciais para desenvolver atividades de alfabetização.
Muitas vezes, o professor de sala de aula regular, é acusado de não dar atenção ao seu aluno com alguma deficiência. No entanto, na maioria das vezes, esse profissional não está capacitado para atuar em cenários de diversidade e deixa de tomar, não intencionalmente, decisões fundamentais por mera falta de conhecimento.
No caso de alunos com deficiência visual não é diferente. A presença desse aluno em sala requer algumas estratégias específicas que, na maioria das vezes, são simples, tornando-se de grande importância para o sucesso do ensino-aprendizagem. Por exemplo, é fundamental que o aluno esteja situado à frente, nas primeiras carteiras, pois uma das formas de perceber o mundo é pela audição e o ruído para quem senta ao fundo poderá ser prejudicial. Outra ação importante é a manutenção de certa rotina com a organização do mobiliário da sala. Também não se poderia deixar de citar a necessidade da utilização de material adaptado. Essa adaptação, em diversos casos, é realizada pelo próprio professor na confecção do material que utilizará em aula, assim como o planejamento de atividades interativas (em grupo) entre esse aluno e os seus colegas.
Após essa breve introdução, falaremos, mais detidamente sobre algumas atitudes iniciais no processo de alfabetização. Dependendo da realidade da classe, deverão ser tomadas medidas que atendam a demanda requerida e já observada pelo professor. Portanto, nosso propósito é apresentar uma discussão embrionária, que poderá ser desenvolvida a partir de diferentes contextos.
Nessa perspectiva, para ilustrar o nosso artigo, falaremos sobre o ensino de uma das letras do alfabeto, em Língua Portuguesa, em sala de aula regular.
Como proceder?
Os alunos, quando possível, devem realizar as atividades em grupo a partir das orientações do professor. O aluno com deficiência visual deverá compor um dos grupos e ser orientado verbalmente a respeito da atividade que será desenvolvida.
O aprendizado do alfabeto deverá ser feito com o uso de células braile e a marcação dos respectivos pontos em relevo confeccionados em material apropriado ( EVA) para facilitar o manuseio e reconhecimento tátil pelo aluno. Na imagem a seguir, é possível ter uma ideia dessa proposta.
Nessa coluna o professor Saulo César fala sobre o sistema braile e dá breves noções de alfabetização para alunos cegos no ensino fundamental.
Fig. 7 Cela braile em EVA (8)
Caberá ao professor mediar a construção de significados entre a informação oral das letras do alfabeto e a sua correspondência em braile. Ainda que não seja o braile, como sistema, as noções iniciais da organização e profundidade dos pontos, dentro da cela, é fundamental, pois isso dará a esse aluno a oportunidade de iniciar livremente as associações entre o som (nome) da letra e a sua forma escrita em braile.
Por exemplo, ao aprender a letra A, o aluno saberá reconhecer no braile que a sua representação é a seguinte: ponto número 1, primeira coluna, primeira linha. Abaixo, pode-se observar essa descrição:
Nessa coluna o professor Saulo César fala sobre o sistema braile e dá breves noções de alfabetização para alunos cegos no ensino fundamental.
Fig. 8 Letra A – Alfabeto Braile (9)
É muito importante, ainda, que o aluno com deficiência visual consiga dimensionar que a escrita no sistema braile é uma forma diferente de representação, daquela usada pelos seus colegas videntes, quando escrevem em Língua Portuguesa; entretanto, devem reconhecer que o conteúdo é o mesmo. Nesse sentido, a mediação do professor será crucial para que esse aluno perceba ( e se perceba) suas próprias necessidades, sem, o risco de criarem traumas que poderão resultar em seu fracasso escolar.
Sugestões
A seguir, indico algumas leituras (referências bibliográficas) e dois vídeos, que poderão contribuir para o enriquecimento d@s Leitores e Leitoras interessad@s. Outra sugestão é fazer o download do Braile Virtual. Esse é um programa, disponibilizado gratuitamente pela Faculdade de Educação da USP, pensado para o ensino básico do braile para videntes.
MOURA, Maria Cecília de. A lei sobre o reconhecimento de LIBRAS como primeira língua da comunidade surda, pág. 50 -60. In: Olhares sobre a inclusão. SILVA, Saulo César Paulino e. (Org.). Litteris: Rio de Janeiro, 2014.
SANTILLÁN, Pilar Samaniego e NIETO, Candido Gutiérrez. El contexto de la investigación: Ecuador en la entrada del tercer milênio, pág. 15-22. In: Inclusión, discapacidad y empleo: Algunas claves a través de siete historias de vida. GARCIA, Mayka Garcia et ali. Ediciones Cinca: Madrid, 2010.
SILVA, Saulo César Paulino e. Deficiência visual sob os pontos de vista médico, pedagógico e o sistema braile. Revista Inclusiones. Número 01, Octubre-Deciembre, 2014, pág. 249-263.
Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais – Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil. https://www.udesc.br/arquivos/udesc/documentos/Lei_n__10_436__de_24_de_abril_de_2002_15226896225947_7091.pdf Acesso em 20-11-2019.
Consideraremos, para fins de concordância, daqui para adiante, o termo “sistema braile” ou simplesmente “braile”.
Prezados leitores e leitoras, estamos aqui, outra vez, para conversarmos um pouco mais a respeito da relação entre a deficiência visual e a construção de sentido nas aulas de leitura em Língua Portuguesa.
Particularmente, no dia de hoje, para iniciarmos nosso diálogo, gostaria de compartilhar uma experiência, vivenciada ainda no idos dos anos de 1990, que me motivou a buscar respostas para minhas necessidades em sala de aula. O fato se deu em uma faculdade particular da capital paulista, quando lecionava produção de texto para uma turma de comércio exterior, primeiro semestre.
Naquele momento, me deparei com um aluno deficiente visual em sala e, por desconhecer a sua realidade, fiquei sem saber como aplicar as estratégias mais adequadas que o motivariam a produzir textos e quais seriam as suas reais necessidades para esse aprendizado. Nesse contexto, algumas questões começaram a me incomodar e decidi aprofundar os estudos com alunos deficientes visuais, em busca de respostas, que resultaram no projeto de Doutorado: “A construção de identidades sociais do aluno com deficiência visual no ensino superior nas conversas sobre textos”, trabalho orientado pela profa. Dra. Mara Sophia, do LAEL, Departamento de Linguística Aplicada da PUC-SP. No ano de 2009, essa pesquisa foi publicada pela Editora LCTE, sob o título “Percebendo o ser”.[1]
Durante o desenvolvimento desse projeto, foi possível me aproximar do mundo das pessoas com deficiência visual, (re) conhecendo um pouco de suas necessidades e ansiedades. Para isso, foi organizado um grupo de leitura e discussão com alunos da LARAMARA[2], onde, posteriormente, me tornaria voluntário durante mais de 03 anos. Esse grupo de leitura era composto por jovens, de ambos os sexos, com faixa etária (aproximada) entre 16 e 23 anos; alguns apresentavam cegueira e outros baixa visão.
Essa experiência foi marcante e muito importante para a realização de uma verdadeira desconstrução do “mito” cegueira, pois somos educados, na maioria das vezes, a conceber o cego como um indivíduo infeliz, que procura o reestabelecimento da visão a qualquer custo, e que sem ela, a visão, torna-se incompleto e incompetente.
Não podemos ignorar que a ausência total ou parcial da visão causa certas limitações ao indivíduo, mas não o conforma como ser incapacitado para desenvolver atividades, como, por exemplo, a leitura, a escrita, mesmo em braile, ou ainda o torna um ser passivo, ausente de senso crítico diante da realidade que o cerca. Se considerarmos a leitura como uma prática social, conforme se nos apresenta Kleiman (2001)[3], nessa perspectiva, seria contraditório não vislumbrar o aluno com deficiência visual como sujeito de sua própria história.
Se por um lado, a desconstrução do estereótipo da cegueira é fundamental para podermos (re) pensar nossas práticas pedagógicas no campo da leitura, nas aulas de Língua Portuguesa, por outro, torna-se fundamental conceber as identidades sociais, a partir da noção de multiplicidade, ou seja, de acordo com HALL (2003)[4], somos muitos “eu” em nós mesmos. Em outras palavras, a concepção identitária, apoiada nessa concepção, se contrapõe à ideia do ser estável e uno. Portanto, quando nos referimos a uma pessoa com deficiência visual ( baixa visão ou cego), também nos reportamos a um (a) jovem, homem, mulher, aluno, aluna, trabalhador, trabalhadora, filho, filha, pai, mãe entre tantos outros papeis sociais.
A dinâmica com o grupo de leitura se dava da seguinte maneira: era selecionado um texto de interesse coletivo, e, posteriormente, uma semana antes da nossa conversa, esse texto era repassado para os alunos, que deveriam ler para ser discutido no encontro agendado. O importante da parceria com a LARAMARA foi aprender, durante essa vivência, que cada aluno apresenta uma necessidade específica, a partir de uma análise prévia (observada em seus prontuários), que, nesse caso, foi realizada pela equipe técnica da Instituição.
O material entregue a(o)s aluno(a)s era em tinta (texto ampliado) para aqueles que apresentavam baixa visão e em braile para os cegos. Inicialmente, conversávamos sobre o que tinham entendido e quais as suas impressões sobre o texto. Todos os encontros foram gravados e analisados, a partir da transcrição das conversas desenvolvidas nas reuniões.
Durante a análise dos dados, informações importantes foram surgindo, à medida que a pesquisa avançava. Essas informações, identificadas na fala dos integrantes do grupo de leitura, como marcas linguísticas, foram fundamentais para realizarmos uma importante constatação referente à construção de identidades sociais desses alunos. Para que isso fosse possível, tomamos como um dos critérios teóricos basilares os estudos desenvolvidos por Moita Lopes[5], relacionados à noção de identidades fragmentadas e o seu surgimento nos espaço discursivo de sala de aula.
As análises a respeito das discussões sobre os textos apresentados durante os encontros revelou uma tendência muito interessante, que discutirei a seguir.
As inferências apresentadas pelo(a)s aluno(a)s revelaram que, ao se referirem a ele(a)s mesmo(a)s, em diferentes momentos de sua interpretação, quase sempre construíam uma imagem positiva, revelada no emprego de verbos e adjetivos como “sou competente”. Por exemplo, um deles disse que era capaz de frequentar as aulas noturnas em uma Faculdade particular na Capital Paulista e depois voltar sozinho para sua casa, que se localizava em uma cidade da Grande São Paulo, utilizando o transporte público.
Por outro lado, quando se referiam à forma como a sociedade os via, apontavam a construção de uma imagem negativa, acompanhada da ideia de incompetência e de incompletude.
Essa experiência foi de grande valia para enriquecer o meu próprio repertório como professor e pesquisador. Digo isso, porque, a partir desse estudo, pude compreender um pouco mais a respeito da importância das aulas de leitura, nas aulas de Língua Portuguesa, para as pessoas com deficiência visual. Essa importância pode ser traduzida nos desafios da organização de atividades pedagógicas, que atendam as reais necessidades desse(a)s aluno(a)s.
Acredito também que compartilhar essas experiências, neste espaço virtual, é também uma maneira de incentivar colegas, profissionais da área educacional, a conversarem sobre um tema, que ainda não é muito discutido fora dos círculos restritos da Academia.
Portanto, caro(a) amigo(a) leitor(a), se você tiver interesse em conhecer um pouco mais sobre essa pesquisa a respeito da construção de identidades do aluno com deficiência visual e sua relação com a leitura, deixarei indicado, ao final deste artigo, um link, para você realizar o download deste trabalho. Ou ainda, se quiser falar diretamente comigo para tirar suas dúvidas, poderá entrar em contato com o e-mail disponibilizado em nossa coluna.
Deixo um abraço e o(a)s espero em nosso próximo encontro.
Para realizar o download da Tese: Construindo as identidades sociais do aluno com deficiência visual nas conversas sobre texto, clique aqui.
[3] KLEIMAN, Angela. Oficina de leitura: teoria e prática. Campinas/SP: Pontes, 2001. 8ª. Ed.
[4] HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade . Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
[5] MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Identidades fragmentadas: a construção discursiva de raça, gênero e sexualidade e sala de aula. Campinas/SP: Mercado de Letras, 2002.
Professor Saulo César escreve mensalmente nesse espaço para desconstruir o esteriótipo de deficientes visuais. Para ler suas outras colunas, clique aqui.
Prezados Colegas e Leitores, estou muito feliz em poder partilhar os estudos que venho desenvolvendo sobre leitura, em Língua Portuguesa, com deficientes visuais e a construção de sentido. Primeiramente, quero agradecer aos Idealizadores, deste espaço virtual, pela oportunidade.
A ideia de compartilhar essas experiências vem ao encontro da necessidade manifestada por muitos educadores, particularmente os professores de Língua Portuguesa, de (re) conhecerem quais as necessidades de alunos cegos, ou com deficiência visual, no momento de organizarem e planejarem atividades de leitura em sala de aula. Isso, no entanto, não exclui o público mais amplo, também interessado no tema.
Inicialmente, farei uma breve introdução ao mundo da pessoa com deficiência visual, estabelecendo as diferenças conceituais entre a cegueira e a deficiência visual, apresentando as principais causas. Posteriormente, algumas tecnologias assistivas, desenvolvidas para atenderem às necessidades educacionais especiais desse público específico, como a audiodescrição, e outras informações que se fizerem necessárias ao longo dessa nossa conversa.
Outro ponto fundamental está relacionado com o conceito de leitura e sua abordagem nessa perspectiva temática, pois ler, como sabemos, vai muito além da mera decodificação, sendo resultado de um processo cognitivo e também social. Nesse sentido, faremos uma breve apresentação teórica, na perspectiva da Linguística Aplicada, sem, contudo, adotar um discurso hermético, que caracteriza os artigos acadêmicos.
É também importante levar em consideração as pesquisas recentes a respeito da Língua Portuguesa, que priorizam um olhar mais abrangente sobre o seu uso em diferentes contextos socioculturais. Isso tudo somado a sugestões de leitura, além de vídeos tematizados.
A interação entre esta Coluna e os seus Leitores é fundamental para o esclarecimento de possíveis dúvidas, além da proposição de novas discussões a partir de sugestões encaminhadas para o e-mail: saulosilva@usp.br
Sejam tod(a)s bem vindo(a)s!
Cego ou deficiente visual?
A ausência de visão é uma condição que, ao longo da história da humanidade, sempre chamou a atenção nas diferentes sociedades. Essa ausência é marcada, na maioria das vezes, por estereótipos relacionados, por exemplo, ao uso, pelo cego, de “poderes excepcionais” que lhe dariam condições perceptivas extrasensoriais. Essa condição, durante a Idade Média, custou a vida de muitas pessoas, pois, não raro, eram acusados de bruxaria e levados à fogueira!
Longe de ser uma história que ficou esquecida no passado, o cego ainda sofre preconceito de diversos matizes, que se refletem nas variadas esferas sociais, incluindo-se a escola. Esse preconceito é manifestado por expressões jocosas, piadas, dentre outras formas depreciativas, que se perpetuam cristalizadas em nossa cultura. E esse é um ponto importante para começarmos a aprofundar nossas reflexões a respeito da realidade de alunos cegos, suas identidades [1] e as práticas pedagógicas de leitura em sala de aula.
O estigma da condição de fracassado está associado à construção de uma imagem pautada na suposta ideia de incompetência para a execução de determinadas tarefas, levando-se em consideração que a ausência da visão, realmente limita os indivíduos para executarem algumas atividades, mas não os incapacita. Para se abstrair esse conceito, é necessário entender que a percepção do mundo pelos sentidos tátil-cinestésico e auditivos é condição sine qua non.
Nessa perspectiva, poder-se-á questionar, informalmente, o seguinte:
Como o senso comum entende a cegueira e como é possível conceber que o cego “leia” com os dedos e com os “ouvidos”? Longe de querer apresentar fórmulas prontas, que esgotem o assunto, proporemos um repensar a leitura, como ação cognitiva, social e como se relaciona com a percepção de mundo do aluno deficiente visual ou cego.
O termo DEFICIENTE VISUAL deverá ser empregado sempre que se quiser englobar todas as categorias de pessoas que apresentam algum tipo de limitação visual severa ou total. Se pensarmos nesse termo como uma espécie de guarda-chuvas, que abriga outras subdefinições, talvez fique mais fácil para o leitor entender. Usaremos o esquema a seguir para ilustrar essa concepção.
Resumidamente, entende-se a baixa visão como uma limitação visual severa que proporciona ao deficiente visual executar determinadas tarefas com o auxílio de alguma visão residual. Por outro lado, a cegueira adquirida é aquela limitação visual em que não há auxílio de qualquer visão residual e é causada por diferentes tipos de traumas. Por exemplo, um acidente de carro, em que a pessoa tem o cristalino perfurado, certamente terá um trauma permanente, que resultará em cegueiraadquirida . O terceiro caso, cegueira congênita, poderá ser causada por inúmeras enfermidades como, por exemplo, catarata infantil, glaucoma congênito, retinose pigmentar, dentre outras.
Outro fator importante, no contexto da leitura com alunos deficientes visuais, é o fato de alguns indivíduos apresentarem memória visual e outros não. No entanto, esse fator será desenvolvido em outra oportunidade, quando falaremos especificamente sobre cognição, linguagem e interpretação de textos em Língua Portuguesa.
Antes do término dessa breve introdução ao tema, gostaria de deixar indicado um filme, muito interessante, que conta a história de Mirco Balleri. Um garoto italiano, vítima de acidente, que enfrentará os desafios da cegueira adquirida, particularmente em uma escola para meninos cegos. Também, gostaria de deixar indicada a leitura do texto: “ver e não ver”, do neurologista Oliver Sacks, página 73, do livro “Um antropólogo em marte”. Em linhas gerais, trata-se da história de Virgil, uma pessoa que sofre cegueira por causa de uma catarata severa. Após procedimento cirúrgico, os efeitos em sua visão são inusitados e proporcionam algumas reflexões importantes. Vale a pena ler! Esse artigo inspirou o filme “À primeira vista” com direção de Irwin Winkler, do ano de 1999.
Espero que esse nosso primeiro encontro seja o início de uma conversação saudável, em que juntos, possamos construir um diálogo acadêmico e fraternamente humano.
Abaixo, deixo indicados dois links para acessarem o filme: “Vermelho como o céu” e o texto “Ver e não ver”.
Um abraço a todos e todas.
Filmes indicado “Vermelho como o céu”, acesse aqui.
“Ver e não ver – Um antropólogo em marte”, acesse aqui.
[1] Sobre identidade do aluno (universitário) cego, sugiro a leitura do artigo, A PERCEPÇÃO DE IDENTIDADES SOCIAIS DO ALUNO COM DEFICIÊNCIA NO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO, de nossa autoria, e publicado na Revista Inclusiones, publicada por La Universidad de Los Lagos, Chile. Acesse aqui.