Porque somos professores e humanos!

Ao se aproximar o Dia dos Professores, Elza Gabaldi descreve uma experiência dolorosa quando um de seus alunos faleceu.

A frase mais dita e divulgada no 15 de outubro é “Feliz dia dos Professores”. Uma homenagem àqueles que preparam outros seres humanos para as várias funções na sociedade, inclusive para aquelas que ainda não existem.

A frase, ainda que nobre e justa, está distante da realidade daqueles que têm por ofício ensinar. A profissão de professor é uma das mais arriscadas do mundo, já que cada aluno é um mundo a ser descoberto. São mistérios que todos os dias tentamos desvendar. E, diferentemente da imagem criada ao longo da história que somos “detentores do conhecimento” sabemos que somos seres que amam o conhecimento, mas como todos os seres  humanos, temos limitações.

Se perguntarmos aos professores os fatos que mais os marcaram, todos terão uma infinidade de histórias. São mundos que se revelam todos os dias diante deles. E, sendo assim, elas podem ser lindas e maravilhosas, mas também o seu contrário. São livros abertos com histórias que precisam ser contadas e lidas.

Na trajetória de mais de trinta anos sendo professora, a retina de meu olhar se deteve mais tempo em alguns acontecimentos. Eles me ensinaram tanto quanto os muitos livros que li. São acontecimentos que marcaram minha vida para sempre. Produziram mais sentido e clareza em meu ser do que muitas teorias estudadas no meio acadêmico.

Neste ofício, mais aprendi do que ensinei. Conheci estudantes bons e maus. Inocentes, puros, tiranos e até mesmo perversos. Tem aqueles que se destacam em tudo, lideram grupos e estudos. Há também os que  se escondem de tudo, de difícil acesso. Nestes tudo é segredo. E ainda existem aqueles que, mesmo em tenra idade, mostram maturidade e caráter impecáveis. Um tecido raro que não sabemos onde o primeiro fio se inicia, nem onde irá terminar, mas tecemos junto com eles quando estamos ensinando.

E nesse tecer, precisei me traduzir em muitas línguas para me fazer entender. Nem sempre fui  compreendida, aceita ou amada. Contudo,  continuei entrando e caminhando pelas brenhas que se apresentavam a minha frente e sigo assim até hoje. Não foram poucas as vezes em que me deparei nas encruzilhadas e precisei fazer algumas escolhas que doeram muito, mas foram necessárias.

E, assim caminhando, minhas retinas por tantas vezes inundadas de lágrimas de alegria ou de tristezas, puderam registrar fatos que vi e vivi como professora. Muitas formaturas com risos, roupas novas, festas e lágrimas de separação. A cada formatura, muitas separações são feitas porque novos caminhos diferentes serão seguidos; as produções de textos, muitas vezes eram transformadas em verdadeiras confissões de medos, angústias e sonhos. Revelações de segredos registrados numa folha de papel e que meus olhos percorriam nas muitas noites antes de dormir e em longos fins de semana para devolvê-las o mais rápido possível ao seu redator. E, nas pequenas perguntas como “O que você achou de meu texto”, havia mais do que uma pergunta que nem sempre pude responder.

Vi alunos partindo, desistindo da escola. Novatos chegando e esperando um acolhimento. Outros,  chegavam querendo demarcar terreno e poder. Alguns tiveram doenças graves. O câncer deixou marcas profundas e também um quê de vitimismo em um deles. Era uma questão de tempo ele compreender que teve muita sorte e apoio para superar a doença. O ataque de asma de uma adolescente me ensinou o quão bom é respirar sem dor.  Mas nada marca mais do que a morte de um ser jovem e cheio de vida.

Ele foi cercado por outros adolescentes quando ia para sua casa. Eles o ameaçaram, xingaram. Naquele dia, se o grupo cometeu alguma violência física contra ele, eu nunca soube.

O pai dele, ao me ver no velório, não se cansava de  dizer: “Obrigado professora”. Eu assentia com a cabeça. Ele andava pela sala, caminhando em volta do caixão. A cada vez que passava por mim, contava um pouco do que tinha acontecido. “Ele sofria do coração”, disse”. “Ficou muito assustado com a ameaça do grupo de rapazes”. “Depois se sentiu mal e não resistiu…”

“Ele queria muito uma motinha para ir para a escola. Eu comprei, continuou o pai. “Ele estava feliz professora…” “Obrigado professora…” “Obrigado professora…”

No dia seguinte, ao voltar para a sala de aula, não encontrei aquele rosto moreno, sorridente e calmo. Também não encontrei os mesmos sorrisos na face dos seus colegas e amigos de sala de aula. Estavam mudados, tristes e calados. A perda os fez amadurecer muito rápido, de um dia para o outro. Era o mês de outubro, mês que se comemora o Dia dos Professores.

Aprendi que todos os dias são Dia dos Professores. São dias bons e dias difíceis marcados por acontecimentos que permanecem no coração e na memória para sempre. Sim, somos professores, humanos e imperfeitos. Sabemos que nem sempre temos respostas mediante a tantos mistérios e grandiosidade da vida.

 

Elza Gabaldi é professora de português para nativos e estrangeiros há 30 anos.  Para ler suas outras colunas, clique aqui.

O mundo na minha língua

As comemorações do dia da Língua Portuguesa, no dia 5 de maio, trouxeram muitas questões que são pouco debatidas fora dos ambientes escolares e acadêmicos: a importância de saber se expressar adequadamente, conhecer mais profundamente a gramática, ter alegria de se comunicar bem e expressar os sentimentos mais profundos e sinceros por meio dela, conhecer de fato a importância que ela exerce no dia-a-dia. Lembrei-me de um fato ocorrido comigo quando estava viajando.

Você pensa que o mundo é inglês? A frase proferida pelo informante na estação de trem de Zurick, na Suíça, pegou-me de surpresa. A dúvida surgiu quando eu não encontrava o nome da cidade Munique em inglês. Meu objetivo era chegar a Munique de trem e de lá voltar ao Brasil. Fiquei receosa de comprar uma passagem para outro lugar, haja vista tudo estar escrito em alemão. Procure por München, ele me disse.

Fazer o quê? Obediente aceitei a recomendação, mas depois percebi que, para o que eu queria fazer, o ônibus seria melhor opção, além de mais barato. Queria ver as paisagens em câmara mais lenta, da janela do ônibus. Decisão acertada. Mas a frase ficou em minha cabeça. Por que ele pensou que que o mundo era em inglês? Certamente por ser a língua universal de comunicação. Ele estava enganado.

É sempre mais gratificante percorrer os lugares por terra. O contato mais próximo com a paisagem nos enriquece sempre. Dá aquela sensação de que estamos conhecendo as pessoas e a geografia. Da janela do ônibus, a paisagem se apresenta, mostrando suas casas, cidades, plantas, animais e vegetação com suas cores e seus movimentos próprios.

Durante a viagem, muitas cidades e locais interessantes iam aparecendo e o motorista do ônibus, “gentilmente”, explicava tudo em alemão, mesmo sabendo que havia muitos estrangeiros ali. A voz dele era mansa e pausada. E minha raiva não. Foi uma discriminação para com todos os estrangeiros que estavam no ônibus. e não eram poucos. Ele nos excluiu de saber um pouco mais sobre aqueles lugares tão belos de sua terra.

Atravessar uma fronteira de ônibus eu só havia feito uma vez, quando fui para Foz do Iguaçu e de lá passei para o lado argentino. Mas atravessar a fronteira da Suíça para a Alemanha, são outros quinhentos.  São alguns euros e uma “politzia” que entra no ônibus de forma muito severa perguntando o que estamos fazendo lá, quanto tempo vamos ficar, etc. As perguntas são em inglês, mas com o sotaque alemão bem carregado. As minhas respostas idem, com este sotaque brasileiro bem carregado.

Após a “politzia” nos liberar, o ônibus rumou seu curso e entrou numa balsa. Eu não estava acreditando. Desconhecia aquela parte do trajeto. Que beleza de lago. De um lado a Suíça, do outro a Alemanha. Conforme a balsa se afastava do território suíço se aproximava da Alemanha, algo mudava. Foi muito prazeroso ver a bandeira da União Europeia balançando ao vento.

No percurso para Munique, havia muitas placas indicando nomes conhecidos pelos tristes fatos históricos. Auschiwitz foi a placa que mais me chamou a atenção. A seta indicava à direita. Nós seguimos em frete.

Munique é uma cidade plana. Foi destruída durante a guerra e reconstruída depois.  As pessoas são educadas, dão informações em inglês como se fosse em alemão. São sorridentes e simpáticos.  As bicicletas enchem as calçadas no espaço reservados a elas. Muita gente indo e vindo do trabalho. Nos fins de semana tudo fecha, inclusive a cozinha do hotel, coisa difícil de uma brasileira, moradora de São Paulo entender.

Mas uma coisa eu entendi. Aquele homem que me disse, quase em tom de acusação que “eu pensava que o mundo é em inglês” estava enganado. Meu mundo é em português e aqui faço meus registros nesta língua dona de mim. Agradeço a ele por ter me dito o que nunca esperei ouvir e entender que é por esta língua que consigo me comunicar e me sentir participante do mundo. Vielen Dank, Sir.

Elza Gabaldi é professora de português para nativos e estrangeiros há 30 anos. Também leciona espanhol e escreve neste espaço..