Esta língua faz magia

Esta língua faz magia

Boas tardes. Espero que se encontrem bem de saúde e que a normalidade esteja a voltar ao mais normal possível. Há alguns meses celebrou-se o primeiro dia mundial da língua portuguesa, um acontecimento com a dimensão e com o destaque possível nestes tempos em que andamos entregues ao domicílio, mas um motivo de reconhecimento da grandiosidade deste bem que o mundo partilha e através do qual pensamos e comunicamos. É a diversidade que vive dentro desta língua – parece que agora se recuperou o termo “mestiçagem” – a sua maior riqueza e um dos seus mais belos traços distintivos. As culturas e as nuances que a constroem e se espalham por todos os recantos do mundo. Um bem haja a esta língua que de longe até aqui chegou e tanto nos conta. Uma língua capaz de expressar e misturar de tudo um pouco, revelando desde os seus aposentos o clássico e o tropical, o mar e o deserto e gentes de toda a natureza. Uma língua que germinou outras e deixou prole, desde os crioulos do ocidente africano aos da Índia e do sudeste asiático, do patuá de Macau ao papiamento das antilhas caribenhas. Uma vez em Madrid conheci pessoas da ilha de Curaçao, a norte da Venezuela, aquela gente toda loirinha e neerlandesa a falar um crioulo tão familiar e cheio de português pelo meio. Gente muito boa. Outra vez em Montenegro encontrei um sérvio que me dizia entender português se eu falasse devagar e a questão é que entendia mesmo, explicou-me depois que era por causa de como nós, portugueses, ter crescido com as telenovelas brasileiras lá por casa. Em Malaca, das profundezas da identidade dos povos uma senhora de sua bonita idade a trocar boas tardes num suave português dentro das ruínas de uma igreja com vista para o estreito. Em Lisboa um chinês com o genuíno português do Porto. Em Cantão um chinês com o autêntico português de Luanda. Em Xangai uma chinesa com o português mais paulista de São Paulo. Em Macau por vezes ainda se apanha o patuá a andar pelas ruas, uma mistura de português com cantonês, mandarim e contributos de muitas outras línguas do sudeste asiático. A língua portuguesa tem tanta prole, tantos mundos que nem nos passa pela cabeça. Até tem o “amazonês” que é quase a sinopse da própria língua portuguesa.

Qualquer professor que ensine português fora recordará muitos motivos não tão evidentes que levam as pessoas a estudar esta língua. Teria inúmeros para referir uma vez que aqui já trabalhei com público de muita natureza, trabalhadores de empresas em vias de ir para Angola, Moçambique ou Brasil, crianças para se juntarem a familiares em Portugal, ávidos colecionadores de línguas e até detentores de vistos dourados. Normalmente é pelo futuro profissional ou por razões familiares, mas por entre as motivações que trazem pessoas para a língua portuguesa menciono três: uma aluna que foi atrás do português porque tinha como ídolo o piloto brasileiro Rubens Barrichello (!); uma aluna que queria o português para ler Fernando Pessoa no original (não é das motivações mais inusitadas); um aluno atraído pela figura de Vasco da Gama (faz parte do currículo de história do ensino secundário chinês). Acrescento outra. Recentemente, procurou-me uma jovem que depois de acabar a universidade decidiu tirar um ano sabático para aprender português. Durante um ano tivemos aulas quase todos os fins de semana, ao fim do qual com enorme preseverança, até porque além desta família não tinha mais ninguém com quem praticar português, foi a exame e conseguiu a certificação que lhe permitiu aceder ao mestrado que agora frequenta em Lisboa. A motivação dela para tudo isto? Agir. A pancada que a ligou à língua portuguesa foi uma amiga lhe ter apresentado as músicas do Agir. Ficou tão apaixonada ou grudada nas músicas do Agir, mesmo não entendendo as letras, que acabaram por lhe desviar a vida para a língua portuguesa e depois para Portugal. Não é só por causa do valor económico e profissional, muitas vezes a magia nasce do nada, de um acaso que como outros tornam os dias e as vidas tão mais únicas e saborosas. Lançando-me, porque sim, o desafio de escolher um de entre os insignes operários da língua portuguesa para assinalar esta data e estando eu a escrever frases para um periódico, faço referência à figura do multi-facetado Millôr Fernandes, prolífico cronista brasileiro, mas também ilustrador e dramaturgo, sendo acima de tudo um dos grandes buriladores das palavras da língua portuguesa para a qual contribuiu com a sua genuína mordacidade com uma série de tiradas antológicas. Relembrei-o um dia destes ao cruzar-me com a frase “viver é desenhar sem borracha” e outras acabei por ir procurar como “família é um grupo de pessoas que tem a chave da mesma casa”; “com muita sabedoria, estudando muito, pensando muito, procurando compreender tudo e todos, um homem consegue, depois de mais ou menos quarenta anos de vida, aprender a ficar calado.” O cardápio de inspiração e humor perspicaz é abundante. Nesta língua cabe Millôr e cabemos todos porque todos, consagrados e deslembrados, a produzimos e transformamos. Tanto é de Camões como de Aleixo, de Pessoa como de Oswald de Andrade, de Guimarães Rosa como de José Cardoso Pires, de Sophia e Clarice, O’Neill e Leminski, Pepetela e Torga, Paulina Chiziane ou José Luís Peixoto. E a música, também é de todos os músicos. Língua de uns e outros e de todos sem excepção. Uma língua decorada por todos, decorada com os jacarandás do tupi, o chá de Cantão ou com o carimbo em carne viva do quimbundo. Uma língua que é bem tratada e que é mal tratada e que se está bem a marimbar para tudo isso, tal como se está para os muros e fronteiras internas que muitos teimam em lhe traçar, inclusive ou principalmente os seus académicos. No outro dia ouvi alguém que por entre tantos insights e inputs debitados, de repente objectou “olhe que não é baixar”, “nós em Portugal dizemos descarregar o documento ou o ficheiro”. É engraçado que quando é para a fotografia há sempre a bandeirinha da língua com xis milhões de falantes e na posição ípsilon a nível mundial, mas depois somos sempre muito solícitos a puxar do dedo de inquisidor-mor do tribunal do santo ofício do português de Portugal mal ele ponha um pé no quintal do português dos vizinhos. Algo que de modo nenhum se aplica a anglicismos e demais palavras estrangeiras. Por exemplo, agora já ninguém usa tigelas ou mesmo malgas, sopas e cereais são para se comer em bowls. Usar palavras da língua portuguesa na língua portuguesa? Ultraje, sacrilégio; Enfiar amiúde, e desnecessariamente, inglês no português? moderno, bem-parecido, fancy. Quando se cita Virgílio Ferreira o que verdadeiramente se quer dizer é “Da minha língua vê-se o Mar da Palha” e o heterónimo de Pessoa diz que “A minha pátria é a língua portuguesa da metrópole”. Mas a língua portuguesa também é isto, criqueira, incongruente e com muitas camadas de pele. Uma língua que não tem dono por ser de muitas mãos. Uma língua que faz magia e nos dá prazer, uma língua que sabe como nos pôr um sorriso na cara e fazer sentir-nos vivos. Muita saúde para a língua portuguesa, para os que a falamos e para os que a ela se virão juntar!

Manuel Pires, português, é Professor de Português. Atualmente vive e trabalha na China. Ama as palavras e as culturas que a língua portuguesa traz dentro de si.

Agonia

Nessa coluna a professora Elza Gabaldi mistura linguística, música e cultura para falar sobre algo comum entre todos nós: a agonia.

A letra mais utilizada do alfabeto da língua portuguesa é a letra “a”. No dicionário Houaiss, os verbetes iniciados com a letra “a” ocupam 362 páginas. Entre a tantas palavras iniciadas com a letra “a” temos as que evocam sensações boas: ânimo, amigo, amizade, afinidade; outras evocam o outro extremo:  ansiedade, antipatia e agonia.

A agonia se revela em sofrimento, quer seja da alma, quer seja do corpo. Uma espécie de sofrimento agudo que atinge tanto o físico quanto a moral.

Quem nunca viu um animal agonizar? Ter de sacrificá-lo torna-se a pior agonia para quem é responsável pelo bichinho e que, apesar disso, precisa buscar um meio de não prolongar aquele sofrimento.

No âmbito social a agonia nos chega nos momentos em que nos damos conta da perversidade de alguns seres de nossa espécie. São tiranos que não se importam com a dor alheia e matam, estupram, castigam, humilham e maltratam outros seres humanos.

Nos últimos tempos a agonia se estabeleceu de forma coletiva no Brasil: a reversão de leis já estabelecidas em 2016 – a prisão em segunda instância- em que o criminoso deve ser preso após o juiz determinar sua pena.

Os dias e meses que antecederam essa reviravolta marcou nos brasileiros uma lenta e sofrida agonia. Todos sabíamos os rumos que o país estava tomando, bem como os rumos que o Supremo Tribunal estava dando ao país. E, como bons brasileiros esperamos a decisão. E ela veio. E trouxe o fim da agonia, implantando em seu lugar a desesperança.

O fim da agonia foi devastador: todos os tipos de criminosos podem sair das prisões e aprisionar os cidadãos de bem com suas ações predadoras.

Antes da votação do Supremo, vivíamos a agonia devido a não compreensão de como aqueles que são “Supremos” se arvoram a ir contra a vontade de uma nação, isto é, em soltar criminosos da prisão. Como se não bastasse, legislam em causa própria sempre alegando “que está na Constituição”. Ao que tudo indica, a Constituição precisa ser revisada, pois as brechas que encontram em suas entrelinhas são assustadoras e sempre são usadas pela minoria mais rica. Cabe dizer que é uma riqueza duvidosa, devidos aos escândalos de corrupção que seus “proprietários” estão envolvidos.

Oswaldo Montenegro venceu o festival de música, em 1980, com a música Agonia. Ela traduz o que nós brasileiros sentimos agora:

“Se fosse resolver, queria te dizer, foi minha agonia

Se eu tentasse entender, Talvez eu não conseguiria

E aqui no coração eu sei que vou morrer um pouco a cada dia…”

Assim é.

O supremo suprimiu as esperanças de quem de fato, acreditava na justiça.

Elza Gabaldi é professora de português para nativos e estrangeiros há 30 anos. Também leciona espanhol e escreve neste espaço sempre que pode. Acesse suas outras colunas clicando aqui.

Nhenhenhém, a herança indígena no português

Comendo fruta, cuidando de plantas ou mesmo chamando alguém vemos muitas palavras que são herança indígena no português.
Nhenhenhém, é riqueza vocabular, a herança indígena no português.
Nenhum brasileiro tem dúvida sobre sua língua materna. Sabe que sua maior expressão se dá pela língua portuguesa.  É por meio dela que ele se identifica e se expressa. Contudo, comendo uma fruta, cuidando de plantas, passado por cidades ou mesmo chamando alguém pelo primeiro nome, verifica-se que são muitas as palavras que não são oriundas do Português. Elas são uma herança deixada pelos nativos da Terra Brasilis, os índios.
Quando os europeus aqui aportaram, depararam-se com uma infinidade de plantas, frutas e animais que desconheciam. Foram os índios que apresentaram todas as novas espécies aos europeus. E, até hoje usamos grande parte das palavras delas, ainda que não conheçamos seus significados.
Quem nunca comeu jaboticaba, ou tomou seu delicioso licor? Quem nunca viu uma jaguatirica? Se não viu, já viu o tatu. Este animalzinho foi tema da Copa do Mundo, o Fuleco. E muita gente ficou jururu por causa do fracasso de nossa equipe.
Ninguém quer morar numa biboca, nem ficar velha coroca, muito menos capenga. Ficar jururu, nem pensar. Melhor comer mandioca e lambari fritos em companhia da Iracema.
Melhor ainda, conhecer mais palavras que estão na boca do povo e em muitos outros.
Frutas: Segundo Silveira Bueno, jaboticaba vem do tupi-guarani e significa fruto em forma de botão. E haja botão naqueles galhos e troncos. Nascem pequenos, verdes e crescem e se tornam roxos intensos. Ricos em tanino, como o vinho. Assim, dizem.
Animais: jabuti, que nada e respira. Jaguatirica, onça arisca, fujona.
Lugares: Jabaquara, de yabá-coara, que significa o lugar dos fujões. Lugar no alto da serra entre Santos e São Paulo. Para lá fugiam os escravos e lá formaram quilombos.
Plantas: jacarandá, que tem cerne duro, madeira dur. Esta árvore, além das flores roxas, é muito usada em chás. Sua madeira serve para fazer violões. Encanta os olhos e os ouvidos.
Pessoas: Iracema, lábios de mel. Iara, senhora, dona.
Há ainda os adjetivos:
Coroca, que significa caduca, misturou-se com o latim. Caduco em latim significa aquele que cai.
Capenga, de acanga, osso; de penga, quebrado. Ou seja, ficar quebrado, partido, aleijado.
Jururu, de yuru-ru, boca comprida, bico comprido. E quem não fica de bico quando está triste, pensativo ou melancólico?
Biboca, significa buraco no chão. Também se associa a casebre, casa feita de pau-a-pique e barro.
Mandioca. Esta faz sucesso em muitos pratos. No livro, O país das Bananas, de J. A. Dias Lopes, está registrado que os europeus ficaram encantados quando viram os índios comendo aquela raiz cozida com mel. Mal sabiam eles que esta raiz nos daria muitas outras riquezas culinárias.
Lambari, de lambary, pequeno peixe de água doce. Muito apreciado como petisco ou tira-gosto. Por ser pequeno, quando frito, fica crocante.
Como se pode observar por estas poucas palavras, não se pode negar que o português do Brasil foi enriquecido graças àqueles que aqui estiveram antes de nós. Quem não presta atenção nisso, perde um patrimônio imensurável.
No uso comum, dizemos que nhenhenhém quando queremos dizer que alguém está falando muito e coisas sem importância. Mas nhenhenhém, segundo Nascentes, vem do tupi e significa falar.
Hoje, sabemos que 80% dos nomes da fauna e da flora vem principalmente do tupinambá. Não podemos ainda esquecer outras palavras que enriquecem nossa língua portuguesa. Tal riqueza está em nossos lábios e em nossas vidas todos os dias.
Elza Gabaldi é professora de português para nativos e estrangeiros há 30 anos. Também leciona espanhol e escreve neste espaço sempre que pode. Acesse suas outras colunas aqui.

 

  • 06/07/2019

Outros alfabetos

Quem já passou pela experiência sabe que ensinar português para crianças falantes de outras línguas, não é para qualquer um. Ensinar crianças que desconhecem o alfabeto romano consiste em um desafio ainda maior do que ensinar uma criança nativa ou que conheça o alfabeto romano, haja vista ela desconhecer não apenas as letras, como também os sons e usos das palavras, o que a coloca numa situação bastante difícil ao ser inserida em sala de aula. Além disso, elas requerem os mesmos cuidados que qualquer criança nativa requer.

Muitos são os fatores que implicam o processo de ensino/aprendizagem aos não falantes de português. Desconhecer os comportamentos culturais é uma barreira enorme porque implica não saber como proceder em muitas situações. Isso, por vezes pode parecer falta de educação, mas é apenas uma ação normal em sua cultura, mas estranha a nós, como por exemplo, não olhar para o professor quando ele explica determinada palavras ou frase. Para eles, fixar-se na parte escrita, isto é, dominar o código, é o suficiente. Contudo, quando se deparam com letras como c e g que vão mudar de som diante das vogais “e” e” i”. O olhar deles demonstram o suto e o grande ponto de interrogação que a mudança de uma vogal pode causar. isto ocorre também com os sons do “g” e do “j”, do “q” e “k”, além do pb, fv, dt, etc. Estes são apenas alguns exemplos da batalha que o professor terá de enfrentar para ajudar este tipo de estudante – de qualquer idade – a se comunicar em português. Custa muito mais tempo e mais trabalho do que ensinar um nativo, até porque este conhece o som e a imagem, precisando aprender apenas o domínio da escrita.

Crianças e jovens que chegam de países como China, Etiópia, Síria, Líbano e África em idade escolar e precisam acompanhar o ano letivo, são os que mais sofrem. Muitas vezes, eles são colocados nas salas de aula, em séries avançadas, sem nenhum conhecimento da língua portuguesa. E, convenhamos, ficar ouvindo conversas, explicações, vendo páginas abertas escritas em uma língua desconhecida por horas causa, no mínimo, grande cansaço.

Se atentarmos para a distância que se encontra o alfabeto romano dos caracteres chineses, por exemplo, torna-se mais fácil entender o porquê eles precisarem de mais tempo para dominarem a língua portuguesa. Os caracteres chineses, também chamados de logogramas, (汉字 / 漢字Hanzi), são utilizados também no Japão e Coréia do Sul, com modificações. A escrita ge’ez (ግዕዝ Gəʿəz), também chamada de etiópica, é uma escrita originalmente desenvolvida para escrever a língua ge’ez, língua semítica. As línguas que fazem uso deste tipo de alfabeto é o amárico e o tangrina. O alfabeto árabe, ( أبجدية عربية) é o principal  alfabeto usado para representar  a língua árabe e outras como o persa e línguas bérberes.

Minha experiência ensinando pessoas que aprenderam outro alfabeto que não o romano tem confirmado que é bem mais trabalhoso e difícil ensiná-los do que ensinar quem domina o nosso alfabeto. Aprendi que nada substitui a presença amiga e dedicada dos professores. Eles fazem toda a diferença: produzem, exercícios, fazem desenhos, gesticulam, representam cenas porque não esquecem de se colocar no lugar do estudante. Na verdade, eles se jogam de corpo e alma na missão de socorrer àqueles que se encontram quase à parte da sociedade, devido a diferença profunda entre os alfabetos.

Com as frequentes mudanças no mundo, percebemos cada vez mais a presença não apenas de venezuelanos, peruanos, colombianos, mas também de sírios, africanos entre outros. E como ensinar nossa língua a tantos povos tão distintos? Sendo humano e se colocando no lugar do outro, sem esquecer seu grande valor e contribuição nesta desafiadora jornada.

Elza Gabaldi é professora de português para nativos e estrangeiros há 30 anos. Também leciona espanhol e escreve neste espaço todos os sábados.

  • 15/06/2019

 

Imperativo!

Os modos verbais nos ensinam que permeamos por três mundos:

1. O mundo das ações concretas, ou seja, o Modo Indicativo;

2. O mundo das possibilidades, isto é, o Modo Subjuntivo;

3. O mundo da ordem, também chamado de Imperativo.

Ainda que todos exerçam a mesma importância em nossas vidas, os verbos do Modo Imperativo estão sendo utilizados sem muito critério. Por ter o poder de impactar, tornaram-se a forma mais recorrente nas redes sociais, palestras, treinamentos, indicações de localização e informações gerais.  Ao que tudo indica, estamos nos esquecendo da importância das possibilidades, isto é, usar mais verbos no Modo Subjuntivo.

No mundo das ações concretas, no Modo Indicativo estão os verbos que contam nossa história com ações que fizemos, fazemos e faremos. São nossas mães e pais que, primeiramente, comentam nossas pequenas ações de um tempo em que nossa memória não alcança. Nossos familiares e amigos mantém tudo vivo, lembrando e comentando nossos feitos desde o primeiro choro, primeira arte, ir para a escola entre outros. Com o tempo, já com um histórico de vida, armazenamos nossas memórias e a acionamos sempre nos lembrando dos momentos bons, dos mais importantes, dos tristes e dos mais traumáticos, estes, tão difíceis de apagar. Mas todos eles permanecem em nós e vão nos modelando sempre. E, em cada agora, projetamos o futuro, recordamos o passado e realizamos ações, pois viver é agir. E, vamos realizando nossas atividades diárias, necessárias ou não, obrigatórias ou não, seguindo em frente porque há algo além do agora, como houve no passado.

Este mundo denominado concreto, indicando cada ato, enlaça-se a um mundo de possibilidades com aquelas palavrinhas que sempre lançamos mão: “Quando eu crescer, quero ser médico”, “Quando eu terminar a faculdade, farei uma longa viagem”; “Se eu puder, farei mestrado no próximo ano” e, “Se eu ganhasse na loteria..”. E, neste emaranhado de desejos e necessidades, às vezes, nossas ações se realizam, outras não, já que a vida não é sempre uma certeza. Porém, não há como descartar este mundo de possibilidades e tentar trazê-lo um tempo chamado agora.

Com nossos pais e familiares aprendemos desde muito pequenos o que podemos e o que não podemos fazer: “Não faça mais isso.” E, pela cara da mãe ou do pai, entendemos rápido o que é uma ordem. Mas o Imperativo vai se revelando de formas muito diferente em nossas vidas. Ele se apresenta em momentos que não há uma ordem expressa, que pode ser grave, mas que não tem agressividade como, “Tome cuidado” “Faça o seu melhor”. Há ainda aqueles que são muito próprios dos que desejam sempre o melhor: “Vá com Deus”, “Volte logo”, “Não suma”. Há também aqueles momentos especiais quando nossos pares, amigos e pessoas mais próximas nos acalentam mediante as dores físicas e da alma: “Não chore”; “Tenha calma”; “Conte comigo”. Ou ainda fazem votos de que tudo dê certo: “Confie, tudo se arranjará! Na escola, com a professora e colegas descobrimos que a ordem vem acompanhada de gentileza: “Feche a janela, por favor”; “Espera um pouquinho”; “Estudem para a prova”.

Contudo, ultimamente, o Imperativo ganhou uma proporção descomunal e gera paradoxos. Chega até ser uma forma de chantagem: Coma isto, emagreça rápido, coma aquilo; compre, economize; fale, não fale, grite, não grite, ganhe, perca, viaje, fique em casa e assim por diante. Mas o pior é: “Envie esta mensagem para 100 pessoas senão…” é assustador.

E a loucura se apresenta de todas as formas. Todos nos tornamos donos do que deve ser feito e cumprido. Mas, então, como ficam os diferentes? Como nos relacionaremos com eles? Seremos nós os imperadores a dar-lhes ordens, ainda que eles não estejam fazendo mal a ninguém?

Pensando em não deixar o Imperativo imperar, podemos nos exercitar retomando outros tempos verbais, inclusive os que indicam possibilidade: “Que tal nos vermos neste sábado?” “Quando vamos nos ver e bater um papinho?” Ou ainda, “Cuide-se muito, por favor!” As respostas, com certeza serão menos imperativas e mais colaborativas como: “Podemos sim!” “Logo, logo”; “Obrigado”, “Claro”, “Sim, sim… E muitas ações iniciadas no mundo das possibilidades serão realizadas, sem implicar em obrigações ou ordem, de forma mais prazerosa e verdadeira.

Elza Gabaldi é professora de português para nativos e estrangeiros há 30 anos. Também  escreve neste espaço quando possível. 

 

Música: Língua universal

Elza Gabaldi traz uma crônica sobre uma língua que todos entendem: a música, enquanto passeia pela cidade e toda sua vivacidade ao redor.

Iniciar um dia de trabalho nem sempre é fácil: faça sol, faça chuva, acordar cedo, sair correndo e ir trabalhar demanda energia, foco e tempo. Muitos têm mais recursos e vão de carro para seu trabalho; outros vão de metrô e muitos outros de ônibus. Também há muitos que vão a pé. De uma forma ou de outra, uns com mais e outros com menos, todos vão se cansado quando o fim de semana se aproxima.

Esperar o metrô que passa a cada três minutos, parece muito quando estamos cansados. Se há filas, parece que o tempo para. E, devagar, todos vão se ajeitando e tomam seus lugares nos vagões cheios no horário de pico. Em meio a todos também um artista de rua entra no metrô. Ajeita-se como pode, toca e canta.

E canta bonito. Toca bonito também. No sacolejo do metrô, ambas as atividades exigem certo equilíbrio, haja vista as freadas bruscas e o pouco espaço.

O som da música invade aquele espaço onde há tantos olhos e ouvidos, agora voltados ao artista de rua. E, naquele espaço de um vagão, os rostos se põem mais leves, as feições menos duras. Nos rostos cansados pode se ver um quê de doçura, um leve sorriso.

As músicas, cantadas ou apenas instrumentalizadas possuem uma linguagem especial. Elas invadem mentes e corações. Está acima dos códigos, das línguas e dos idiomas porque penetram em nosso ser pela sonoridade e mexem com nossa alma.

Os artistas cantores possuem características distintas: alguns pedem palmas, outros são mais silenciosos. Porém, todos precisam sobreviver e por isso, um dinheirinho, cai bem. O lugar de colocar o dinheiro pouco importa: um chapéu, um boné, uma caixinha ou uma caixa grande, como já presenciei. Eles merecem.

Um deles me chamou a atenção porque mudou a forma de agradecer. Em vez de dizer obrigado, ele usava a palavra gratidão.

De nada, caro cantor. Somos nós que agradecemos pelas músicas que, por um momento nós torna todos entendedores da mesma língua, a língua dos sons que invade nossos corações.

Elza Gabaldi é professora de português para nativos e estrangeiros há 30 anos. Escreve neste espaço sempre que possível.

O mundo na minha língua

As comemorações do dia da Língua Portuguesa, no dia 5 de maio, trouxeram muitas questões que são pouco debatidas fora dos ambientes escolares e acadêmicos: a importância de saber se expressar adequadamente, conhecer mais profundamente a gramática, ter alegria de se comunicar bem e expressar os sentimentos mais profundos e sinceros por meio dela, conhecer de fato a importância que ela exerce no dia-a-dia. Lembrei-me de um fato ocorrido comigo quando estava viajando.

Você pensa que o mundo é inglês? A frase proferida pelo informante na estação de trem de Zurick, na Suíça, pegou-me de surpresa. A dúvida surgiu quando eu não encontrava o nome da cidade Munique em inglês. Meu objetivo era chegar a Munique de trem e de lá voltar ao Brasil. Fiquei receosa de comprar uma passagem para outro lugar, haja vista tudo estar escrito em alemão. Procure por München, ele me disse.

Fazer o quê? Obediente aceitei a recomendação, mas depois percebi que, para o que eu queria fazer, o ônibus seria melhor opção, além de mais barato. Queria ver as paisagens em câmara mais lenta, da janela do ônibus. Decisão acertada. Mas a frase ficou em minha cabeça. Por que ele pensou que que o mundo era em inglês? Certamente por ser a língua universal de comunicação. Ele estava enganado.

É sempre mais gratificante percorrer os lugares por terra. O contato mais próximo com a paisagem nos enriquece sempre. Dá aquela sensação de que estamos conhecendo as pessoas e a geografia. Da janela do ônibus, a paisagem se apresenta, mostrando suas casas, cidades, plantas, animais e vegetação com suas cores e seus movimentos próprios.

Durante a viagem, muitas cidades e locais interessantes iam aparecendo e o motorista do ônibus, “gentilmente”, explicava tudo em alemão, mesmo sabendo que havia muitos estrangeiros ali. A voz dele era mansa e pausada. E minha raiva não. Foi uma discriminação para com todos os estrangeiros que estavam no ônibus. e não eram poucos. Ele nos excluiu de saber um pouco mais sobre aqueles lugares tão belos de sua terra.

Atravessar uma fronteira de ônibus eu só havia feito uma vez, quando fui para Foz do Iguaçu e de lá passei para o lado argentino. Mas atravessar a fronteira da Suíça para a Alemanha, são outros quinhentos.  São alguns euros e uma “politzia” que entra no ônibus de forma muito severa perguntando o que estamos fazendo lá, quanto tempo vamos ficar, etc. As perguntas são em inglês, mas com o sotaque alemão bem carregado. As minhas respostas idem, com este sotaque brasileiro bem carregado.

Após a “politzia” nos liberar, o ônibus rumou seu curso e entrou numa balsa. Eu não estava acreditando. Desconhecia aquela parte do trajeto. Que beleza de lago. De um lado a Suíça, do outro a Alemanha. Conforme a balsa se afastava do território suíço se aproximava da Alemanha, algo mudava. Foi muito prazeroso ver a bandeira da União Europeia balançando ao vento.

No percurso para Munique, havia muitas placas indicando nomes conhecidos pelos tristes fatos históricos. Auschiwitz foi a placa que mais me chamou a atenção. A seta indicava à direita. Nós seguimos em frete.

Munique é uma cidade plana. Foi destruída durante a guerra e reconstruída depois.  As pessoas são educadas, dão informações em inglês como se fosse em alemão. São sorridentes e simpáticos.  As bicicletas enchem as calçadas no espaço reservados a elas. Muita gente indo e vindo do trabalho. Nos fins de semana tudo fecha, inclusive a cozinha do hotel, coisa difícil de uma brasileira, moradora de São Paulo entender.

Mas uma coisa eu entendi. Aquele homem que me disse, quase em tom de acusação que “eu pensava que o mundo é em inglês” estava enganado. Meu mundo é em português e aqui faço meus registros nesta língua dona de mim. Agradeço a ele por ter me dito o que nunca esperei ouvir e entender que é por esta língua que consigo me comunicar e me sentir participante do mundo. Vielen Dank, Sir.

Elza Gabaldi é professora de português para nativos e estrangeiros há 30 anos. Também leciona espanhol e escreve neste espaço..