Boas tardes. Espero que se encontrem bem de saúde e que a normalidade esteja a voltar ao mais normal possível. Há alguns meses celebrou-se o primeiro dia mundial da língua portuguesa, um acontecimento com a dimensão e com o destaque possível nestes tempos em que andamos entregues ao domicílio, mas um motivo de reconhecimento da grandiosidade deste bem que o mundo partilha e através do qual pensamos e comunicamos. É a diversidade que vive dentro desta língua – parece que agora se recuperou o termo “mestiçagem” – a sua maior riqueza e um dos seus mais belos traços distintivos. As culturas e as nuances que a constroem e se espalham por todos os recantos do mundo. Um bem haja a esta língua que de longe até aqui chegou e tanto nos conta. Uma língua capaz de expressar e misturar de tudo um pouco, revelando desde os seus aposentos o clássico e o tropical, o mar e o deserto e gentes de toda a natureza. Uma língua que germinou outras e deixou prole, desde os crioulos do ocidente africano aos da Índia e do sudeste asiático, do patuá de Macau ao papiamento das antilhas caribenhas. Uma vez em Madrid conheci pessoas da ilha de Curaçao, a norte da Venezuela, aquela gente toda loirinha e neerlandesa a falar um crioulo tão familiar e cheio de português pelo meio. Gente muito boa. Outra vez em Montenegro encontrei um sérvio que me dizia entender português se eu falasse devagar e a questão é que entendia mesmo, explicou-me depois que era por causa de como nós, portugueses, ter crescido com as telenovelas brasileiras lá por casa. Em Malaca, das profundezas da identidade dos povos uma senhora de sua bonita idade a trocar boas tardes num suave português dentro das ruínas de uma igreja com vista para o estreito. Em Lisboa um chinês com o genuíno português do Porto. Em Cantão um chinês com o autêntico português de Luanda. Em Xangai uma chinesa com o português mais paulista de São Paulo. Em Macau por vezes ainda se apanha o patuá a andar pelas ruas, uma mistura de português com cantonês, mandarim e contributos de muitas outras línguas do sudeste asiático. A língua portuguesa tem tanta prole, tantos mundos que nem nos passa pela cabeça. Até tem o “amazonês” que é quase a sinopse da própria língua portuguesa.
Qualquer professor que ensine português fora recordará muitos motivos não tão evidentes que levam as pessoas a estudar esta língua. Teria inúmeros para referir uma vez que aqui já trabalhei com público de muita natureza, trabalhadores de empresas em vias de ir para Angola, Moçambique ou Brasil, crianças para se juntarem a familiares em Portugal, ávidos colecionadores de línguas e até detentores de vistos dourados. Normalmente é pelo futuro profissional ou por razões familiares, mas por entre as motivações que trazem pessoas para a língua portuguesa menciono três: uma aluna que foi atrás do português porque tinha como ídolo o piloto brasileiro Rubens Barrichello (!); uma aluna que queria o português para ler Fernando Pessoa no original (não é das motivações mais inusitadas); um aluno atraído pela figura de Vasco da Gama (faz parte do currículo de história do ensino secundário chinês). Acrescento outra. Recentemente, procurou-me uma jovem que depois de acabar a universidade decidiu tirar um ano sabático para aprender português. Durante um ano tivemos aulas quase todos os fins de semana, ao fim do qual com enorme preseverança, até porque além desta família não tinha mais ninguém com quem praticar português, foi a exame e conseguiu a certificação que lhe permitiu aceder ao mestrado que agora frequenta em Lisboa. A motivação dela para tudo isto? Agir. A pancada que a ligou à língua portuguesa foi uma amiga lhe ter apresentado as músicas do Agir. Ficou tão apaixonada ou grudada nas músicas do Agir, mesmo não entendendo as letras, que acabaram por lhe desviar a vida para a língua portuguesa e depois para Portugal. Não é só por causa do valor económico e profissional, muitas vezes a magia nasce do nada, de um acaso que como outros tornam os dias e as vidas tão mais únicas e saborosas. Lançando-me, porque sim, o desafio de escolher um de entre os insignes operários da língua portuguesa para assinalar esta data e estando eu a escrever frases para um periódico, faço referência à figura do multi-facetado Millôr Fernandes, prolífico cronista brasileiro, mas também ilustrador e dramaturgo, sendo acima de tudo um dos grandes buriladores das palavras da língua portuguesa para a qual contribuiu com a sua genuína mordacidade com uma série de tiradas antológicas. Relembrei-o um dia destes ao cruzar-me com a frase “viver é desenhar sem borracha” e outras acabei por ir procurar como “família é um grupo de pessoas que tem a chave da mesma casa”; “com muita sabedoria, estudando muito, pensando muito, procurando compreender tudo e todos, um homem consegue, depois de mais ou menos quarenta anos de vida, aprender a ficar calado.” O cardápio de inspiração e humor perspicaz é abundante. Nesta língua cabe Millôr e cabemos todos porque todos, consagrados e deslembrados, a produzimos e transformamos. Tanto é de Camões como de Aleixo, de Pessoa como de Oswald de Andrade, de Guimarães Rosa como de José Cardoso Pires, de Sophia e Clarice, O’Neill e Leminski, Pepetela e Torga, Paulina Chiziane ou José Luís Peixoto. E a música, também é de todos os músicos. Língua de uns e outros e de todos sem excepção. Uma língua decorada por todos, decorada com os jacarandás do tupi, o chá de Cantão ou com o carimbo em carne viva do quimbundo. Uma língua que é bem tratada e que é mal tratada e que se está bem a marimbar para tudo isso, tal como se está para os muros e fronteiras internas que muitos teimam em lhe traçar, inclusive ou principalmente os seus académicos. No outro dia ouvi alguém que por entre tantos insights e inputs debitados, de repente objectou “olhe que não é baixar”, “nós em Portugal dizemos descarregar o documento ou o ficheiro”. É engraçado que quando é para a fotografia há sempre a bandeirinha da língua com xis milhões de falantes e na posição ípsilon a nível mundial, mas depois somos sempre muito solícitos a puxar do dedo de inquisidor-mor do tribunal do santo ofício do português de Portugal mal ele ponha um pé no quintal do português dos vizinhos. Algo que de modo nenhum se aplica a anglicismos e demais palavras estrangeiras. Por exemplo, agora já ninguém usa tigelas ou mesmo malgas, sopas e cereais são para se comer em bowls. Usar palavras da língua portuguesa na língua portuguesa? Ultraje, sacrilégio; Enfiar amiúde, e desnecessariamente, inglês no português? moderno, bem-parecido, fancy. Quando se cita Virgílio Ferreira o que verdadeiramente se quer dizer é “Da minha língua vê-se o Mar da Palha” e o heterónimo de Pessoa diz que “A minha pátria é a língua portuguesa da metrópole”. Mas a língua portuguesa também é isto, criqueira, incongruente e com muitas camadas de pele. Uma língua que não tem dono por ser de muitas mãos. Uma língua que faz magia e nos dá prazer, uma língua que sabe como nos pôr um sorriso na cara e fazer sentir-nos vivos. Muita saúde para a língua portuguesa, para os que a falamos e para os que a ela se virão juntar!
Manuel Pires, português, é Professor de Português. Atualmente vive e trabalha na China. Ama as palavras e as culturas que a língua portuguesa traz dentro de si.