Sophya

Sophya era este seu nome. Estava parada no corredor em frente à porta da sala de aula onde eu estava com outros alunos que aprendiam português. Aquela jovenzinha de 13 ou 14 anos, apertava fortemente contra o peito uma pasta com cadernos e coisas de escola, onde repousava o queixo numa tentativa de esconder seu nervosismo.

A mãe chegou, entrou na sala e me explicou que ela tinha chegado da China há dois dias e iria iniciar suas aulas de português. Percebi que uma espécie de febre a invadia diante do mundo novo que teria de enfrentar. Os olhos tinham um brilho extra, daqueles que mostram o medo do que está por vir, juntado à timidez natural de tantas meninas chinesas que conheci.

Indiquei a carteira onde ela poderia se sentar, o que ela obedeceu imediatamente como quem precisa se apoiar em algo para se sentir mais seguro. Nada mais pude oferecer que meu sorriso e uma folha com o alfabeto em letras bastão para que ela copiasse. Era tudo o que eu podia fazer naquele momento.

Ela continuava assustada, mas como a cultura chinesa prima pela cópia, ela foi relaxando e arriscava um olhar do canto de olho para observar como eu reagiria ao conferir como ela estava copiando.

O ano transcorreu tão rapidamente quanto seu desenvolvimento. Ela recebeu ajuda e carinho de outros professores e respondeu prontamente a todos os estímulos. No fim do ano prestou uma prova para ingressar no ensino formal. Foi aprovada. Estudava de manhã no colégio e à tarde no curso  de reforço devido sua dificuldade com as disciplinas da área de humanidades: nunca ouvira falar em Grécia antiga, não sabia que existia. Os livros de literatura adotados não foram lidos. A distância de um texto em mandarim – com caracteres –  para um texto literário em língua portuguesa exige muito mais do que conhecer letras,  palavras,  frases e até mesmo parágrafos.

Vi naquela jovenzinha que se preparava para a vida, um modelo de ser humano dedicado, obediente e educado que trazia naqueles olhos de traços orientais mais interrogações do que  os meus ocidentais,  poderiam responder. Olhos “glandes” como os alunos chineses me diziam. Acho que naqueles olhos rasgados e pequenos tinham tantas Chinas quantos tantos Brasis havia nos meus.

Sophya seguiu por aqueles longos e antigos corredores do Colégio com a desenvoltura de quem conquista algo grandioso. Aquela segurança de se sentir pertencente a um mundo que já não era tão distante e estranho quanto foi em sua chegada.  Já manifestava sua dificuldade de entender História. “Era muito difícil, dizia”.

Um dia, uma mãe chinesa entra desesperada em minha sala de aula e falou muitas coisas que eu não podia entender. Ela falava em mandarim ou algum dialeto chinês. Eu precisava de alguém para traduzir a aflição daquela mãe para eu poder ajudar em alguma coisa. E Sophya estava lá e traduziu a preocupação e a angústia daquela mãe para o português: o filho não fora  para casa, ficou no colégio e não avisou a mãe.

Foi assim que Sophya se mostrou tão completa, tão chinesa e tão brasileira, estando apenas há um ano no Brasil. A Sofia tão discutida desde a Grécia Antiga se fez presente ali, em minha frente, naquele corpo e nome de menina, revelando-se um grande ser humano.

Elza Gabaldi é professora de português para nativos e estrangeiros. Idealizadora deste site e amante de leitura. Escreve nesse espaço sempre que pode!

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