O artigo, deste mês de dezembro, de 2019, é mais uma conversa, não extensa, sobre inclusão, sua relação com o ensino de Língua Portuguesa, em sala de aula, e as políticas públicas.
Não raro, o senso comum costuma culpar o professor sobre o insucesso de algumas abordagens, no processo de aprendizagem da leitura, para ficarmos neste recorte.
Sem querer levantar bandeiras ideológicas, o fato é que há tempos os assuntos magistério, sala de aula, escola, dentre outros convergentes, suscitam polêmicas entre especialistas, transbordando para além das conversas formais da academia.
O tema se torna ainda mais delicado, quando é analisado sob o viés da inclusão de alunos com alguma deficiência. No caso deste artigo, delimitaremos essa reflexão para os alunos com deficiência visual, lembrando que esse termo é uma espécie de “guarda-chuva”, que abriga a cegueira congênita, a cegueira adquirida e a baixa-visão.
Ser professor ainda é um grande desafio, neste século XXI, em um país como o Brasil. Sabe-se, e não é de hoje, que dentre esses desafios, é possível apontar: os baixos salários, a falta de planos de carreira, má formação docente, prédios escolares precários, com o agravante da falta de um planejamento macro do Poder Público.
Essa ausência do Estado pode ser percebida, por exemplo, na omissão orçamentária para a Educação, em seus diferentes níveis, além da falta de proposições de políticas públicas, que atendam as diferentes necessidades do complexo cenário educacional.
Além dessa “macroproblemática” (permitam-me, aqui, o uso desse neologismo para ilustrar melhor a ideia), que se reflete, sem dúvida na sala de aula, e na prática docente, vem se somar outra, de cunho cultural e ideológico, que é o ensino de Língua Portuguesa, muitas vezes, descontextualizado e excludente.
A ideia de que a Língua Portuguesa “é uma língua difícil”, ou ainda, que não é “ensinada de acordo com a gramática normativa”, esconde, na verdade, um viés perverso de manutenção do status quo de determinadas camadas sociais, que, ao longo do processo histórico brasileiro, vêm se alternando no poder. (Entenda-se “poder” como a ocupação de postos-chave, nos quais são decididos os destinos da sociedade).
A respeito do aspecto ideológico, desta manutenção, o professor Marcos Bagno, da Universidade de Brasília (Unb), tem se debruçado sobre o tema, publicando inúmeros trabalhos . Só para ficar na ilustração, a obra “A língua de Eulália” apresenta uma discussão muito interessante sobre o preconceito linguístico. Preconceito este que permeia as relações sociais, inclusive nas escolas.
A dicotomia entre o “certo” e o “errado” é a tônica do livro, que instiga o leitor a refletir sobre o assunto. Levando-se em consideração que a Escola é o espaço para a interação e aprendizagem, onde o professor é o mediador, ironicamente é nessa mesma Escola que, muitas vezes, o aluno se descontextualiza, e consequentemente, se exclui (ou é excluído). Outra obra que nos leva a refletir sobre essa questão é “Linguagem e Escola”, em que o fracasso Escolar é apresentado, por meio de uma reflexão sobre uma Escola que não atende às necessidade do seu aluno. O livro foi escrito pela professora emérita da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, Magda Soares e, ao final deste texto, deixarei indicadas essas leituras.
Nessa perspectiva, tem-se, também uma ideia equivocada do aprendizado da leitura, que, a partir de uma visão tradicional, pode ser confundida com o reconhecimento de letras, sílabas e formação de palavras, ou seja: a decodificação. No entanto, inúmeros estudos linguísticos apontam para a necessidade de se conceber a leitura a partir de uma organização complexa do pensamento, em que ler é construir sentido, por meio de estratégias cognitivas de um indivíduo imerso em uma determinada cultura.
Até este momento de nossa explanação temos dois pontos negativamente relevantes: Primeiro: ausência do Estado, Segundo: o estigma do aprendizado de Língua Portuguesa (e consequentemente da leitura). Para agravar, ainda mais essa difícil equação, tem-se nesse cenário desfavorável, a presença de alunos com deficiência visual, na sala de aula regular e, quase sempre, um professor despreparado para atuar em cenários de diversidade.
A imagem que a sociedade constrói sobre o deficiente visual tem como referência o estereótipo da incompetência, da incompletude, da infelicidade, dentre outros, segundo Silva, 2009. Essa estereotipia marca, quase sempre, esse aluno, levando-o a desistência dos bancos escolares; e esse é um ponto nevrálgico, que merece ser comentado neste momento.
Se esse aluno com deficiência visual não é bem sucedido em seu processo de aprendizagem, é preciso uma análise cautelosa para se tentar identificar o problema. Não se trata, obviamente, de achar “culpados”, mas de compreender e interpretar o processo e para isso é preciso ter uma concepção mais ampla para além da sala de aula e das estratégias adotadas pelo professor.
Anteriormente, foi empregado o termo “macroproblemática”, que resume em seu escopo um conjunto de fatores que desaguam em um sistema educacional (quase) falido. Traduzindo essa percepção, o que procuramos alinhavar, nesta breve conversa, é o seguinte:
O sucesso de um processo inclusivo está atrelado a um conjunto de ações e/situações, que não dependerá, exclusivamente, da escola, do professor e do aluno (com deficiência).
Trocando em miúdos, para se aproveitar o dito popular, pode-se afirmar, primeiramente, que a verdadeira inclusão é resultante do compromisso do Estado, por meio de investimentos substanciais na área educacional, e na proposição de políticas públicas responsáveis, que favoreçam a concretização desse contexto.
Outro fator importante está relacionado com a qualidade na formação de professores, que deverão ter seus currículos embasados em conhecimentos teóricos substanciais, proporcionados por pesquisas no campo da Linguística Aplicada. Isso garantirá a esses profissionais da educação um instrumental capaz de auxiliá-los em uma prática pedagógica humana e eficaz.
Somando-se a essa formação, tem-se a urgência de se repensar o conceito de deficiência visual, eliminando-se o estigma da incompetência e da incompletude.
O papel de nossas Universidades é o de gerar conhecimento para a sociedade. Um país que não produz, apenas reproduz. Portanto estará fadado a se perpetuar como um pária na História da Humanidade. Por isso, a responsabilidade por uma sociedade verdadeiramente inclusiva é de todos nós, pois é preciso ver “além da visão”.
Agradeço aos leitores e leitoras, desta coluna, que acompanharam nossa trajetória neste ano de 2019.
Longe dos clichês, desejamos que 2020 seja um ano de conquistas, apesar das perspectivas serem ainda pouco favoráveis e que o compromisso da sociedade brasileira com a inclusão seja retomado de forma efetiva.
Um abraço a todos e todas.
Até o próximo ano.
Indicações para leitura
BAGNO, Marco. A língua de eulália. São Paulo: contexto, 2006.
SILVA, Saulo César da. Percebendo o ser. São Paulo: LCTE, 2009.
SOARES, Magda. Linguagem e escola: uma perspectiva social. São Paulo: ática, 1987.