Desconstruindo um estereótipo

Prezados leitores e leitoras, estamos aqui, outra vez, para conversarmos um pouco mais a respeito da relação entre a deficiência visual e a construção de sentido nas aulas de leitura em Língua Portuguesa.

Particularmente, no dia de hoje, para iniciarmos nosso diálogo, gostaria de compartilhar uma experiência, vivenciada ainda no idos dos anos de 1990,  que me motivou a buscar respostas para minhas necessidades em sala de aula. O fato se deu em uma faculdade particular da capital paulista, quando lecionava produção de texto para uma turma de comércio exterior, primeiro semestre.

Naquele momento, me deparei com um aluno deficiente visual em sala e, por desconhecer a sua realidade, fiquei sem saber como aplicar as estratégias mais adequadas que o motivariam a produzir textos e quais seriam as suas reais necessidades para esse aprendizado. Nesse contexto, algumas questões começaram a me incomodar e decidi aprofundar os estudos com alunos deficientes visuais, em busca de respostas, que resultaram no projeto de Doutorado: “A construção de identidades sociais do aluno com deficiência visual no ensino superior nas conversas sobre textos”, trabalho orientado pela profa. Dra. Mara Sophia, do LAEL, Departamento de Linguística Aplicada da PUC-SP. No ano de 2009, essa pesquisa foi publicada pela Editora LCTE, sob o título “Percebendo o ser”.[1]

Durante o desenvolvimento desse projeto, foi possível me aproximar do mundo das pessoas com deficiência visual, (re) conhecendo um pouco de suas necessidades e ansiedades. Para isso, foi organizado um grupo de leitura e discussão com alunos da LARAMARA[2], onde, posteriormente, me tornaria voluntário durante mais de 03 anos. Esse grupo de leitura era composto por jovens, de ambos os sexos,  com faixa etária (aproximada) entre 16 e 23 anos; alguns apresentavam cegueira e outros baixa visão.

Essa experiência foi marcante e muito importante para a realização de uma verdadeira desconstrução do “mito” cegueira, pois somos educados, na maioria das vezes, a conceber o cego como um indivíduo infeliz, que procura o reestabelecimento da visão a qualquer custo, e que sem ela, a visão, torna-se incompleto e incompetente.

Não podemos ignorar que a ausência total ou parcial da visão causa certas limitações ao indivíduo, mas não o conforma como ser incapacitado para desenvolver atividades, como, por exemplo, a leitura, a escrita, mesmo em braile, ou ainda o torna um ser passivo, ausente de senso crítico diante da realidade que o cerca. Se considerarmos a leitura como uma prática social, conforme se nos apresenta Kleiman (2001)[3], nessa perspectiva, seria contraditório não vislumbrar o aluno com  deficiência visual como sujeito de sua própria história.

Se por um lado, a desconstrução do estereótipo da cegueira é fundamental para podermos (re) pensar nossas práticas pedagógicas no campo da leitura, nas aulas de Língua Portuguesa, por outro, torna-se fundamental conceber as identidades sociais, a partir da noção de multiplicidade, ou seja, de acordo com HALL (2003)[4], somos muitos “eu” em nós mesmos. Em outras palavras, a concepção identitária, apoiada nessa concepção, se contrapõe à ideia do ser estável e uno. Portanto, quando nos referimos a uma pessoa com deficiência visual ( baixa visão ou cego), também nos reportamos a um (a) jovem, homem, mulher, aluno, aluna, trabalhador, trabalhadora, filho, filha, pai, mãe entre tantos outros papeis sociais.

A dinâmica com o grupo de leitura se dava da seguinte maneira: era selecionado um texto de interesse coletivo, e, posteriormente, uma semana antes da nossa conversa, esse texto era repassado para os alunos, que deveriam ler para ser discutido no encontro agendado. O importante da parceria com a LARAMARA foi aprender, durante essa vivência, que cada aluno apresenta uma necessidade específica, a partir de uma análise prévia (observada em seus prontuários), que, nesse caso, foi realizada pela equipe técnica da Instituição.

O material entregue a(o)s aluno(a)s era em tinta (texto ampliado) para aqueles que apresentavam baixa visão e em braile para os  cegos. Inicialmente, conversávamos sobre o que tinham entendido e quais as suas impressões sobre o texto.  Todos os encontros foram gravados e analisados, a partir da transcrição das conversas desenvolvidas nas reuniões.

Durante a análise dos dados, informações importantes foram surgindo, à medida que a pesquisa avançava. Essas informações, identificadas na fala dos integrantes do grupo de leitura, como marcas linguísticas, foram fundamentais para realizarmos uma importante constatação referente à construção de identidades sociais desses alunos. Para que isso fosse possível, tomamos como um dos critérios teóricos basilares os estudos desenvolvidos por Moita Lopes[5], relacionados à noção de identidades fragmentadas e o seu surgimento nos espaço discursivo de sala de aula.

As análises a respeito das discussões sobre os textos apresentados durante os encontros revelou uma tendência muito interessante, que discutirei a seguir.

As inferências apresentadas pelo(a)s aluno(a)s  revelaram que, ao se referirem a ele(a)s mesmo(a)s, em diferentes momentos de sua interpretação, quase sempre construíam uma imagem positiva, revelada no emprego de verbos e adjetivos como “sou competente”. Por exemplo, um deles disse que era capaz de frequentar as aulas noturnas em  uma Faculdade particular na Capital Paulista e depois voltar sozinho para sua casa, que se localizava em uma cidade da Grande São Paulo, utilizando o transporte público.

Por outro lado, quando se referiam à forma como a sociedade os via, apontavam a construção de uma imagem negativa, acompanhada da ideia de incompetência e de  incompletude.

Essa experiência foi de grande valia para enriquecer o meu próprio repertório como professor e pesquisador. Digo isso, porque, a partir desse estudo, pude compreender um pouco mais a respeito da importância das aulas de leitura, nas aulas de Língua Portuguesa, para as pessoas com deficiência visual. Essa importância pode ser traduzida nos desafios da organização de atividades pedagógicas, que atendam as reais necessidades desse(a)s aluno(a)s.

Acredito também que compartilhar essas experiências, neste espaço virtual, é também uma maneira de incentivar colegas, profissionais da área educacional, a conversarem sobre um tema, que ainda não é muito discutido fora dos círculos restritos da Academia.

Portanto, caro(a) amigo(a)  leitor(a), se você tiver interesse em conhecer um pouco mais sobre essa pesquisa a respeito da construção de identidades do aluno com deficiência visual e sua relação com a leitura, deixarei indicado, ao final deste artigo, um link, para você realizar o download deste trabalho. Ou ainda, se quiser falar diretamente comigo para tirar suas dúvidas, poderá entrar em contato com o e-mail disponibilizado em nossa coluna.

Deixo um abraço e o(a)s espero em nosso próximo encontro.

Para realizar o download da Tese: Construindo as identidades sociais do aluno com deficiência visual nas conversas sobre texto, clique aqui.

[1] https://www.youtube.com/watch?v=HP15HNvYGog&t=117s . Para conhecer um pouco mais sobre a obra. Acessoem 20-10-2019.

[2] https://laramara.org.br/. Acesso em 20-10-2019.

[3] KLEIMAN, Angela. Oficina de leitura: teoria e prática. Campinas/SP: Pontes, 2001. 8ª. Ed.

[4] HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade .  Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

[5] MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Identidades fragmentadas: a construção discursiva de raça, gênero e sexualidade e sala de aula. Campinas/SP: Mercado de Letras, 2002.

Professor Saulo César escreve mensalmente nesse espaço para desconstruir o esteriótipo de deficientes visuais. Para ler suas outras colunas, clique aqui.

5 respostas para “Desconstruindo um estereótipo”

  1. “También creo que compartir estas experiencias en este espacio virtual también es una forma de alentar a colegas, profesionales de la educación, a hablar sobre un tema que no se discute mucho fuera de los círculos restringidos de la Academia.” Gracias, querido amigo, Saulo Cesar por compartir!!!

  2. Muitíssimo obrigada pela dica do lado certo da visão,
    Agradecida por mais esclarecimento ,
    Atenciosamente sua aluna e fã,
    Deusa Matos

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.