Nessa Crônica, o caminhar é mais que percorrer um espaço. Trata-se de observá-lo e pensá-lo como o lugar onde se constroem sonhos.
Eram pouco mais de 16 horas. A tarde caminha para seu fim. A noite anterior foi longa porque o sono não veio. Rebelde, o Orfeu não quis comparecer e permitir o aconchego. No canto do quarto, os tênis pretos, como dois grandes olhos perguntam: e aí, vai ou não vai? Depois não reclame se não conseguir dormir. A advertência foi clara, não podia adiar a caminhada. Não importam as dores, a exaustão, a fadiga. O trajeto é chegar ao parque.
Os pés, sempre doloridos e cansados, envoltos por meias, invadem aquelas covas escuras que agora fazem parte do corpo, fixados pelos cadarços. Um após outro os passos percorrem as ruas. Nesta época, elas estão acanhadas, com pouco movimento devido à pandemia. O comércio também se recente, os clientes são poucos. São muitos os estabelecimentos fechados com placas de vende-se ou aluga-se. Outros estão abandonados e pichados. Um retrato triste de uma crise sem precedentes que gera também abandono.
Os passos precisam ser firmes e precisos, no mesmo ritmo para cumprir seu trajeto. Caminhar é preciso, parar não é preciso. Ah, Fernando, seja pessoa e compreenda: ir implica voltar. O lá é o ponto máximo a se chegar. Lá está ele, o parque.
Agora ele é aqui e os passos revelam novas situações. Os tons infindáveis de verdes das árvores, desde os mais claros aos mais escuros, brilhantes e opacos, enchem os olhos de beleza. As bicicletas, skates e corredores passam mais rápidos em contraste com os mais velhos que caminham lentamente, assim como os pais que diminuem o ritmo de seus passos para acompanhar os de suas pequenas e encantadoras crias.
No parque os passos seguem os caminhos mais tranquilos, aqueles com poucas pessoas, uma busca de tranquilidade e paz. E ali, naqueles locais menos freqüentados, há uma coletânea de cenas se revelando: casais de namorados, abraçados, deitados sobre um tecido qualquer, como se fora o colchão mais macio e confortável do mundo, ilusão criada pelo deleite do namoro e pelo fervilhar dos hormônios.
Os passos seguem e mais adiante outra cena reveladora: uma mulher jovem, morena, de cabelos pretos, ondulados e soltos posa para uma fotógrafa. O marido acompanha um pouco afastado, pois o momento é dela. No vestido longo e branco, ela exibe a barriga avantajada e o orgulho de agasalhar uma vida que cresce dentro e em breve fora daquela barriga. Um registro de um tempo de duas vidas em uma.
A tarde vai caminhando juntamente com cada passo e o trajeto já é o de volta. Mas ainda há muito para percorrer e ver. Pais, com seus pequenos pimpolhos, levaram as iguarias de um piquenique, antigamente chamado de convescote. As palavras também caminham e tomam novos rumos na vida.
Cruzar com bicicletas com gente miúda na garupa ou na dianteira leva ao riso por ver cabelinhos voando e a sensação de liberdade nos rostos dos transportados e de satisfação dos que se aventuram a carregá-los. Experiências únicas que serão contadas nos passos que a vida.
Os passos dos cachorros são pequenos e rápidos. Seus donos, ora tentam acompanhar no mesmo ritmo, ora tentam reter aqueles mais afoitos que tudo querem cheirar ou mijar para marcar território, mas vão todos se deliciando do paradoxo de quem passeia quem. Será o dono quem passeia o cachorro ou o cachorro que passeia com o dono? Direta ou indiretamente, todos passeiam.
Ainda falta um pouco para sair do parque e cada passo importa. Há casais que encontraram um banco e estão sentados conversando, talvez fazendo novos planos ou apenas apreciando aquele momento.
Os passos agora se aproximam da saída do parque. Os pés cansados e doloridos rumam para casa, recompensados pela experiência vivida. Um após outro, passo após outro, as ruas vão sendo deixadas para trás, com todos os movimentos que as envolvem.
Abrir a porta, tirar os tênis, colocá-los num lugar ventilado para uma nova caminhada faz parte do ritual. O que ficou desse caminhar é a certeza de que o parque é um lugar onde nascem muitos sonhos. Caminhar é preciso.
Elza Gabaldi é professora há mais de 30 anos e reflete nesse espaço sempre que pode.
Nessa Crônica, o caminhar é mais que percorrer um espaço. Trata-se de observá-lo e pensá-lo como o lugar onde se constroem sonhos.
Nessa Crônica, o caminhar é mais que percorrer um espaço. Trata-se de observá-lo e pensá-lo como o lugar onde se constroem sonhos.