Audiodescrição e construção de sentido sob a lente da FMRI: uma proposta transdisciplinar

A transdisciplinaridade é uma ferramenta importante para o compartilhamento do conhecimento nas mais diversas áreas do saber. É fundamental que essa construção seja realizada a partir da concepção de pluraridade em que a interação dos estudos, dos mais diferentes campos de pesquisas, se torne uma prática no cotidiano das instituições acadêmicas.

Pensando na urgência de se propor alternativas, apresentamos, em nossa pesquisa de pós-doutorado, um estudo que envolveu, além do arcabouço teórico sobre cognitivismo, linguagem e construção de sentido pelas pessoas com deficiência visual em eventos audiodescritos, pesquisas com ressonância magnética funcional, relacionadas ao campo da Física Geral.

Para atender às características específicas desta proposta, o projeto foi desenvolvido em duas etapas que se complementam. Na primeira, estudamos (comparativamente) a construção de sentido por meio do uso de expressões modalizadoras de proximidade, identificadas por meio da análise dos protocolos verbais, coletados durante a exibição de um curta-metragem audiodescrito e teve como base teórica principal estudos da gramática funcionalista.  Essa primeira etapa de nossa pesquisa, já foi publicada em nesta coluna, em duas etapas, e está a disposição dos leitores.

A segunda etapa, ainda em desenvolvimento, objetiva investigar como ocorreria essa construção de sentido, levando-se em consideração os aspectos morfológicos do cérebro dos participantes (cegos e videntes). Para isso, os estudos com ressonância magnética funcional são fundamentais, pois o escaneamento cerebral proporciona visualizar em tempo real as áreas cerebrais que são ativadas a partir de determinados inputs provocados pelas tarefas aplicadas.

A amplitude e complexidade do tema exigiu que fizéssemos um recorte para a delimitação do universo de pessoas com deficiência visual, levando-se em conta que há diferentes graus de deficiência, provocados por diferentes causas, que vão desde a cegueira total a baixa visão (que é o uso residual da visão para a execução de tarefas cotidianas). Nesse contexto, ainda, é preciso considerar que há situações em que o indivíduo desenvolve uma memória visual e em outros, não. Por isso trabalharemos com os cegos congênitos, que são, justamente, aqueles casos em que a pessoa nasce cega e não desenvolveu essa memória.

Diversos estudos e pesquisas evidenciam que a plasticidade neuronal adaptativa, nos cegos congênitos, faz com que os neurônios occipitais sejam recrutados para executarem outras tarefas sensoriais relacionadas ao tato, à audicão, ao olfato e ao paladar. Entretanto, não se tem conhecimento, até o momento, a respeito de como esses neurônios atuam e qual a sua participacão na realização dessas tarefas. Estudos a respeito do tema não revelam se os neurônios occipitais são recrutados para servir como auxiliares ou se poderiam  agregar aos neurônios responsáveis pelo processamento dos sinais, oriundos de outros sentidos como uma parte integrada. Sobre esse assunto, há duas hipóteses plausíveis, defendidas por grupos diferentes de pesquisadores. De acordo com a primeira hipótese, alguns cientistas acreditam que, logo após o nascimento, os neurônios não executam tarefas específicas, pois todos seriam capazes de processar qualquer estimulo sensorial, independente de sua localizacão.  A segunda hipótese defende que desde o nascimento os neurônios apresentam especificidade e somente um conjunto de neurônios, designados a processar um tipo de estimulo sensorial, são convocados para realizar outro tipo de estimulo, quando há inatividade de um dos sentidos. Por exemplo, os neurônios occipitais são recrutados para processar os estimulo auditivo nos cegos congênitos. Isso ocorreria porque o lobo occipital, responsável pelo processamento dos sinais oriundos da retina, é dividido em estriado e pré-estriado e este último está subdividido em pelo menos outros seis seguimentos distintos.

Nessa perspectiva, surgem alguns questionamentos, organizados nas seguintes perguntas: Primeira: no caso dos cegos (congênitos), os neurônios recrutados para executar diferentes tarefas no uso do tato, da audicão, do paladar e do olfato seriam os mesmos ou para cada sentido haveria convocação de uma determinada área do córtex occipital? Segunda: esse recrutamento seria padrão para todos os cegos (congênitos e adquiridos) ou mudaria de individuo para individuo?  Na maioria dos estudos avaliados, os estímulos empregados são de curta duracão e o seu planejamento impõe inúmeras restrições aos voluntários. Porém é possível empregar estímulos prolongados em que ocorrerão menos restrições aos voluntários. Como exemplo, podemos indicar o trabalho de no qual os voluntários assistiram um filme em uma sessão de fMRI (functional Magnetic Resonance Imaging). Posteriormente, as imagens obtidas, durante o escaneamento, foram processadas, estabelecendo-se a correlacão, pixel por pixel, entre os cérebros dos participantes. O resultado das análises, da investigação citada, revelou que a exibição sequencial estabeleceu certa correspondência entre os cérebros dos voluntários. Entretanto, quando o filme foi seccionado e as cenas mostradas aletoriamente, essa correlacão desapareceu completamente.

No presente trabalho, já estamos realizando experiência, que tem como referencial o estudo citado anteriormente. Porém a ênfase é para a audiodescrição e o processamento cerebral de pessoas cegas e videntes. Para isso é exibido um   curta metragem audiodescrito, para dois grupos distintos, organizados em cegos congênitos e voluntários videntes, que participam das sessões com olhos vendados. Na perspectiva desse recorte investigativo, a pergunta que surge é se haverá correlacão entre os cérebros dos cegos entre si, e entre os cérebros das pessoas cegas com as videntes. Essa análise comparativa, ainda em andamento, poderá fornecer subsídios importantes para responder (total ou parcialmente) as perguntas mencionadas, anteriormente.

Referências Bibliográficas

Hasson, Y. Nir, I. Levy, G. Fuhramann, and R. Malach. Intersubject synchronization of cortical activity during natural vision. Science, 303:1634 { 1640, 2004.

R•oder, O. Stock, S. Bien, H. Neville, and F. R•osler. Speech processing activates visual cortex in congenitally blind humans. European Journal of Neuroscience, 16(5):930{936, sep 2002.

Audiodescrição

Imagem 1. Experiência com grupo de pessoas videntes em máquina de ressonância magnética e membros de nossa equipe.

Professor Saulo César escreve mensalmente nesse espaço.

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