Aroma de um tempo: crônica sobre os sentidos

As manhãs eram frias, muito frias. O sol demorava a aparecer no meio do cafezal. Os pés de café eram bem altos perto de uma menina de seis anos. Os três irmãos mais velhos iam para a escola. Ela e a irmã menor acompanhavam os pais lavradores, jovens, de rostos cansados do árduo trabalho braçal. Sua função era brincar com a irmãzinha. Voltavam para casa à tarde. E já fazia frio outra vez.

Ainda escuro, antes do amanhecer, os pais se punham em pé, acendiam o fogão à lenha, esquentavam a água e faziam café. Era hora de recomeçar. Os irmãos iam para a escola, os pais com suas marmitas nas costas, seguiam para a lavoura de café com suas outras duas meninas.

Em certas épocas, depois de muito cuidar, os pés de café floriam. As ramas se enchiam de flores brancas, miúdas e cheirosas. Elas deviam ser doces porque as abelhas vinham e ficavam caminhando sobre aquelas florezinhas brancas por bastante tempo.

Mas, as flores duravam pouco, logo desapareciam. Em seus lugares surgiam uns carocinhos verdes que iam crescendo dia após dia. Já crescidos começavam a mudar de cor. Começavam a ficar amarelos, depois alaranjados, vermelhos e depois pretos.  Estando mais pretos do que vermelhos, era tempo da colheita.

Monitorados de pequenos cassetetes de madeira dura, improvisados das árvores do local, os pais batiam nos galhos de café para que os grãos caíssem. Logo depois usavam rastelos e faziam montes. Os montes eram abanados em peneiras de arame para serem ensacados.

Próximo da casa havia um grande terreiro de cimento onde se espalhava o café logo de manhã. Conforme o sol esquentava, o café devia ser mexido para que o calor do sol em contato com o cimento apressasse a secagem dos grãos. Depois de seco era ensacado novamente para ser vendido. Mas o café para o consumo da família ficava reservado.  Ele deveria ser consumido pela família até a próxima colheita.

E o café regava as bocas e gargantas de todos em todas as manhãs e também em noites quando aparecia uma visita. O café colhido, seco, guardado cru, era torrado de tempos em tempos para ser consumido.

Era como um ritual: acender o fogo, pegar o café, colocar no torrador e girar, girar até uma fumaça começar a sair do torrador. Ah, que cheiro bom exalava daquele trambolho redondo feito de lata sob aquele fogo. A alquimia se dava no processo de torrar o café.

A mãe ensinou que a cor do café torrado não poderia passar de marrom vivo, senão o café passaria do ponto, deixaria a bebida amarga.

E assim, entre cuidar, colher, secar e torrar, os anos passaram. A labuta, a família, a dureza da vida do campo e o cheiro e gosto do café temperando a vida.

O tempo passou, a vida mudou. Mudando para a cidade perdeu-se o contato com a natureza abundante em beleza e miserável para quem a cultiva.

Já não mais se torra café na casa. Compra-se pronto. Mas ele continua a acompanhar cada manhã, cada membro da família, menos os que se foram, a mãe, o pai, um dos irmãos.

A menina do passado, agora mulher, aquece suas manhãs frias. Ela sorve o café, com uma xícara na mão, olhando a rua, sentindo o gosto do café, ajudando-a a despertar nas manhãs e a animar-se em algumas tardes.

Ela busca um gosto específico, aquele gosto de café torrado, na cor marrom viva que nunca mais foi encontrado. Os cafés de agora são todos mais escuros e mais amargos. E todos os dias, em cada gole de café, sua boca busca aquele sabor que pertence a um tempo, um tempo em que o café tinha outro sabor. Ele agora é outro e tem gosto de saudade.

Elza Gabaldi é professora já mais de 30 anos e escreve neste espaço sempre que pode.

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